Transgêneros e os direitos previdenciários no Brasil

 
João Badari* e Julia Demeter**
 
O Direito evolui e se transforma conforme as mudanças da sociedade, no entanto, este nem sempre é capaz de acompanhar o fato social na mesma velocidade e veracidade em que se exige, como ocorre com os indivíduos transgêneros e a falta de legislação específica para regularizar a concessão dos benefícios previdenciários a esse grupo de segurados.
 
Nessa esteira, a Justiça Federal do Rio Grande do Norte decidiu, recentemente, que a filha trans de pai militar da Marinha tem direito ao recebimento de sua pensão por morte.
 
A legislação brasileira preceitua que apenas as mulheres originariamente biológicas possuem direito ao recebimento da pensão por morte de militares. Porém a 5ª Vara Federal de Natal decidiu que a filha tem direito a pensão, equiparando mulheres biológicas as filhas transexuais, declarando o direito a pensão do pai, que faleceu em 1979.
 
Quando seu pai faleceu, a autora menor de idade, tinha em sua certidão de nascimento o sexo masculino. Apenas retificou sua certidão no ano de 2018.
 
"Mesmo que a autora tenha realizado a alteração civil de nome e gênero apenas no ano de 2018, as provas constantes dos autos ratificam que quando do óbito de seu genitor, no ano de 1979, momento a ser considerado para fins de implementação das condições necessárias para a obtenção do benefício, a requerente já ostentava as características e o intuito de obtenção do sexo feminino, não tendo concretizado seu propósito por impossibilidade de realização e condições alheias à sua vontade. Além de ser absolutamente incapaz diante de sua idade juvenil, com 14 (quatorze) anos apenas, o ordenamento jurídico da época não lhe possibilitava, explicitamente, a alteração do gênero, no caso de masculino para feminino, condição essa que somente restou concretizada no ano de 2018." 
 
O entendimento do Juiz Federal foi de que a União quando uma filha troca seu sexo para masculino, a União tem o direito de cortar sua pensão, por analogia deve também reconhecer o direito de pensão quando ocorre o contrário. Em ambos os casos isso ocorre independentemente da data do óbito do falecido.
 
O fundamento para o recebimento da pensão é apenas um: o gênero da beneficiário(a):
 
"Ademais, o caso paradigma apontado pela demandante demonstra que o ente público, nos autos do Processo nº. 0155101-65.2017.4.02.5101, fez uso da mudança de gênero de segurado para cessar o pagamento do benefício em decorrência da alteração do sexo feminino para o masculino. Por analogia, se a União reconhece a alteração de gênero para sustar o pagamento de determinado benefício destinado ao sexo feminino apenas, também na mesma via deve considerar para fins de concessão. Afinal, o fundamento em que ambos os casos se lastreiam é um só: o gênero do(a) beneficiário(a). E isso independe de a formalização de tal condição ter sido efetivada posteriormente ao óbito do instituidor do benefício. Se na data do falecimento a requerente já preenchia os requisitos necessários para a obtenção da pensão, tanto como filho homem registrado na ocasião, como também como filha, diante das características femininas que apresentava para os pais e para a sociedade, a postulante detém o direito ao recebimento do benefício."
 
A União deverá pagar todos os atrasados (retroativos) gerados desde o pedido administrativo de pensão realizado pela filha, com seus acréscimos de correções e juros legais. A filha terá direito também aos 13º salários não recebidos, desde 18/07/2018.
 
Sobre o caso citado acima, em que o Juiz verificou como análogo, no ano de 2020 devido ao tratamento hormonal realizado e à mudança em seus documentos, o filho transexual de um militar da Marinha perdeu o direito à pensão que recebia por conta da morte de seu pai.
 
O cancelamento de sua pensão ocorreu quando o homem, hoje com 55 anos, dirigiu-se à Marinha para recadastramento periódico. Quando as autoridades constataram que no registro do beneficiário constava não só o nome social masculino, mas que seu gênero também estava identificado como tal, a pensão foi cancelada.
 
O filho impetrou mandado de segurança contra o diretor do Serviço de Inativos e Pensionistas do Comando da Marinha, para que voltasse a receber o benefício. Alegou que, embora tenha nascido com o sexo feminino e tenha vivido durante muitos anos como mulher, identifica-se com o gênero masculino desde a infância. Realizou tratamento hormonal, mas que não fez cirurgia de redesignação sexual, a chamada "mudança de sexo". 
 
No processo ele explicou que continua a ser assistido por uma ginecologista, "o que corrobora com o entendimento que ele ainda é biologicamente uma mulher", devendo, portanto, continuar recebendo a pensão, mas a 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, não acatou a justificativa do impetrante e manteve o cancelamento da pensão.
 
O entendimento da Justiça Federal se garantisse a sua pensão seria considerá-lo como um indivíduo do sexo feminino, "o que reavivaria todo o sofrimento que teve durante a vida e violaria sua dignidade, consubstanciada no seu direito – já reconhecido em juízo – a ser reconhecido tal como é para fins jurídicos, ou seja, como um indivíduo do sexo masculino", apontou o Juiz Federal. 
 
O magistrado também afirmou que, ainda que a decisão seja patrimonialmente desvantajosa para o impetrante, ela legitima sua identidade de gênero e sua condição existencial. Portanto, para o recebimento da pensão por morte de militar, a União deve respeitar o gênero do filho(a) do servidor falecido.
 
Vale ressaltar que a nossa Constituição Federal tem como um dos seus principais objetivos constituir um Estado Democrático, com a finalidade de assegurar os Direitos e Garantias fundamentais como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e livre de preconceitos. Sendo assim, é necessário que a legislação previdenciária acompanhe a evolução social dos transgêneros, afim de não os privar de suas garantias fundamentais na esfera da vida civil.
 
É garantido a todos, inclusive aos transgêneros, pelo nosso texto constitucional, o tratamento igualitário sem distinções de qualquer natureza e, de forma expressa, a proibição ao tratamento desumano, a inviolabilidade da intimidade de cada indivíduo, de sua honra e imagem, desde a mais terna idade. Bem como, lhes é garantido ainda, no diploma normativo civil através da proteção e da previsão ao direito da personalidade, a identidade sexual como algo irrenunciável, vez que esse trata dos atributos psíquicos, físicos e morais do indivíduo, ou seja, da honra, imagem, integridade e da vida, sendo esses, por sua vez, irrenunciáveis e inestimáveis. Assim sendo, salienta-se que os transgêneros estão amparados e protegidos pelos preceitos constitucionais da isonomia, da liberdade, da autodeterminação e da dignidade da pessoa humana, todos expressos na Constituição Federal de 1988 e ainda, pelo Direito da Personalidade esse, por sua vez, elencado no artigo 11 do Código Civil Brasileiro.
 
Deste modo, é necessário reconhecer que a alteração do nome e do gênero de um indivíduo nos documentos oficiais, trata-se de um ato declaratório, haja vista que o indivíduo transgênero percebe-se como o sexo oposto ao atribuído em seu nascimento desde a infância, portanto, a decisão da 5º Vara Federal do Rio Grande do Norte, ao conceder à filha transgênera de pai militar a pensão militar, apenas legitimou sua identidade de gênero e sua condição existencial, aspecto esse de maior relevância e que  deve ser levado a sério em todos os campos da vida civil.
 
Promover a inclusão da mulher transgênera no sistema previdenciário écontribuir com a construção de uma sociedade justa, solidária e fraterna, mas é, também, conferir-lhes bem-estar social, proteção aos riscos sociais, emancipação, aferição de renda. Portanto, conceder à mulher transgênera o direito à pensão no regime militar é promover uma interpretação humanista da norma e é garantir-lhes a manutenção de todos os preceitos constitucionais que lhes são conferidos.
 
*João Badari é advogado especialista de Direito Previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados
 
**Julia Demeter é bacharel em Direito e membro do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados


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