Retrocessos da Lei 14.176/2021 no campo da assistência social

 
José Ricardo Caetano Costa*
 
Preliminarmente, há de se registrar que a Assistência Social brasileira, no estágio em que se encontra a pandemia no Brasil, não merecia uma lei que reduzisse os critérios de acesso ao BPC assistencial da LOAS (Lei n. 8742/93). Muito pelo contrário: em um momento em que a Covi-19 já fulminou tragicamente a vida de meio milhão de brasileiros(as), conduzindo outros tantos milhões ao desemprego ou ao “desalento”, esperar-se-ia que seu papel fosse ampliado. Aliás, bastava fazer cumprir seu papel constitucional de atendimento aos necessitados, conforme esculpido no art. 203, V da Carta Magna de 1988. 
 
Em um primeiro olhar, parece que o critério nefasto da renda per capita do (inferior) a ¼ do Salário Mínimo para acesso ao BPC assistencial, tenderá a ser ampliado para meio salário mínimo. Há de se dizer que, se assim fosse, mas não o é, a normativa somente recepcionaria o entendimento já esposados pelos nossos Pretórios e Tribunais que já estão, desde muito, utilizando o meio salário mínimo como referência nestes julgados.
 
A Lei n. 14.176/2021 não faz rodeio algum em afirmar que pretende “estipular parâmetros adicionais de caracterização da situação de miserabilidade e de vulnerabilidade social”. Desde muito há um movimento, nem um pouco velado, que busca desqualificar a Assistência Social, de modo que esta perca seu dever constitucional de erradicação da pobreza e da diminuição das desigualdades sociais. Lembremo-nos que a PEC n. 06/2019 já tinha o intento de fazer vingar o critério da miserabilidade, além de desvincular o BPC assistencial do salário mínimo vigente. 
 
Com efeito, o que não prosperou por via de Emenda Constitucional (por enquanto), vai se efetivando paulatinamente via legislação infraconstitucional. E a “boiada vai passando” também nesta seara, que pretende solidificar a Assistência Social como a “prima pobre e miserável” dentro da Seguridade Social brasileira. 
Nesta infeliz e trágica perspectiva, somente os que estão me estágio de miséria absoluta terão direito ao BPC assistencial. No melhor dos cenários, terão que já terem ingressado em estágio de vulnerabilidade social para poderem pensar em participar do sistema assistencial da LOAS. Não cabe à Assistência Social, nesta perspectiva nefasta, operacionalizar justamente em sentido contrário, qual seja, o de evitar justamente que os cidadãos e cidadãs tornem-se vulneráveis. Vejamos os milhares que não terão direito ao BPC assistencial, mesmo tendo perdido seus empregos e o seguro-desemprego já ter chegado ao fim, mesmo indo para a fila dos “desalentados”, pois ainda não podem ser incluídos nestas duas categorias.
 
Temos preconizado em vários estudos que o critério da renda deve ser apenas um dos componentes para determinar o critério constitucional de necessidade  - não de miserabilidade, pobreza ou vulnerabilidade, como sói acontece. O próprio IPEA elaborou um índice em 1997, denominado “Pobreza Multidimensional no Brasil”, em que utiliza outros elementos, além da falta de recursos, para configurar o critério de necessidade.
 
Com efeito, mesmo sob o ponto de vista da avaliação do critério econômico como um dos únicos elementos para configurar o direito ao BPC assistencial, aparentemente parece um avanço a utilização do critério do meio salário mínimo como renda per capita. Ocorre que a lei em comento instituiu alguns critérios que, na verdade, terminam por restringir o acesso a este fundamental beneficio. Pontuamos estes novos elementos, que serão especificados em regulamento a ser editado pelo Poder Executivo. São três estes elementos que merecem uma atenção detalhada: a) níveis de deficiência; b) dependência de terceiros para as atividades da vida diária, e, c) a prova do dispêndio do valor de ¼ do SM para com despesas que o SUS ou o SUAS não cobrem.
 
A começar pela instituição de níveis diversos de deficiências, uma classificação hierarquizada que vá do nível leve (este excluído por certo), moderado ou grave, atenta contra a concepção de “incapacidade duradoura” instituída pelo Estatuto do Deficiente – Lei n. 13.146/2015. Desde a CIF/OMS/2001, passando pela Convenção de Nova Iorque (ONU/2007), terminando pela consagração conceitual ampla de deficiência trazida pelo Estatuto do Deficiente, entende-se como tal aquele(a) que possuiu incapacidade duradoura (dois anos ou mais), que em interação com diversos tipos de barreiras e empecilhos, o tornam incapaz. Não temos dúvidas que, na dinâmica que virá e certamente excluirá as denominadas deficiências leves, rompe com a lógica ampliada trazida pelo Estatuto. 
 
O segundo critério é por demais perverso e atentatório à dignidade dos pretendentes ao BPC, criando, aliás, uma figura curiosa: o(a) idoso(a) deficiente, como condição para acesso ao benefício. Isso porque, nesta nova lógica, não é suficiente ter os 65 anos de idade e preencher os quesitos da miserabilidade eleitos, mas também estar na dependência de terreiros para os atos elementares da vida diária (AVD). 
 
Não bastasse, para ampliar o critério da renda para o meio salário mínimo, os(as) idosos(as) devem provar que o valor do ¼ do SM apenas cobre os gastos ordinatórios não satisfeitos pelo SUS e SUAS.
 
A conjugação destes critérios, tal como consta na lei referida, o que certamente será esmiuçado com doses homeopáticas de outras maldades quando do regulamento, atenta contra o Estatuto do Deficiente e, salvo melhor juízo, ao próprio Estatuto do Idoso.
 
*José Ricardo Caetano Costa é doutor em Serviço Social (PUCRS), mestre em Direito (UNISINOS), professor da FADIR/FURG e advogado em Direitos Sociais


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