Menor sob guarda é dependente previdenciário

 
Marco Aurélio Serau Junior*
 
O Supremo Tribunal Federal concluiu em 8/6/2021, o julgamento das ADI’s 4.878 e 5.083, promovidas respectivamente pela PGR – Procuradoria Geral da República e pela OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, onde reconheceu, por maioria (6 x 5 votos), a inconstitucionalidade da Lei 9.528/97, no que diz respeito à supressão da figura do “menor sob guarda” do rol de dependentes previdenciários previsto no art. 16 da Lei 8.213/91.
 
Embora a Relatoria tenha sido distribuída ao Ministro Gilmar Mendes, o acórdão será lavrado pelo Ministro Edson Fachin, que inaugurou a tese divergente e que se sagrou vencedora.
 
A primeira menção importante a ser assinalada é a conotação pejorativa da expressão “menor”, que remete ao antigo Código de Menores, diploma legal superado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que, além de se tratar de nova regulamentação legal, também consiste em novo paradigma conceitual sobre a proteção da infância e da adolescência – mais consonante ao Texto Constitucional.
 
A maioria formada no STF declarou inconstitucional o trecho da Lei 9.528/97 que suprimiu a figura do “menor sob guarda” do rol de dependentes previdenciários à medida em que essa alteração normativa viola o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, prevista no art. 227, § 3º, II, da Constituição Federal:
 
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos:
II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas;
 
Esse direito de proteção integral também se encontra consagrado na Convenção dos Direitos da Criança, incorporada pelo Brasil ao seu ordenamento jurídico, conforme Decreto 99.710/1990.
 
O STF ainda mencionou que o STJ possui entendimento firmado no sentido de que o “menor sob guarda” ainda mantêm a condição de dependente previdenciário, com fundamento no art. 33, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA:
 
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.
 
O voto divergente ainda cuidou de afastar um argumento levado em consideração pelo Ministro Relator, no sentido de que as situações de “guarda de menor” possibilitam recorrentes fraudes.
 
Quanto a isso, redarguiu o voto divergente que o Direito brasileiro encampa o princípio de que se presume a boa-fé e que a má-fé deve ser comprovada; ademais, indicou que o processo de guarda se submete à regulamentação constante no Código Civil e no ECA, contando inclusive com a participação obrigatória do Ministério Público, o que é outro elemento que evidencia que as fraudes não serão a regra em relação à prática deste instituto.
 
Esse trecho do voto condutor é muito relevante, não somente para o tema da condição previdenciária do “menor sob guarda”, mas para todo o Direito Previdenciário, vez que tem sido frequente esse argumento (ou essa sensação) de que os segurados e dependentes são sempre “potenciais fraudadores” da Previdência Social.
 
Não é rara na jurisprudência essa compreensão que praticamente opera uma inversão hermenêutica e presume a má-fé, devendo ser comprovada a boa-fé por parte dos segurados e dependentes.
 
É relevante sublinhar que a decisão proferida nas ADIs 4.878 e 5.083 reestabelecem a condição de dependente previdenciário do “menor sob guarda”, mas consigna a exigência de que deverá ser comprovada, nestes casos, a dependência econômica, nos termos do art. 16, § 2º, da Lei 8.213/91:
 
§ 2º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.
 
Não se aplica ao “menor sob guarda”, portanto, a dinâmica previdenciária relativa aos filhos, para quem a dependência econômica é presumida.
 
Por fim, é importante perceber que o julgamento da ADI 4.878 e da ADI 5.083 não somente solucionam o conflito em torno da dependência previdenciária do “menor sob guarda”, como também projetam possíveis efeitos prospectivos em relação a todo o Direito Previdenciário.
 
O voto do Ministro Edson Fachin faz a menção expressa no sentido de que não se discutiu, ali, o alcance e a constitucionalidade do art. 23, § 6º, da Emenda Constitucional 103/2019, que reproduz o conteúdo da Lei 9.528/97:
 
Art. 23. A pensão por morte concedida a dependente de segurado do Regime Geral de Previdência Social ou de servidor público federal será equivalente a uma cota familiar de 50% (cinquenta por cento) do valor da aposentadoria recebida pelo segurado ou servidor ou daquela a que teria direito se fosse aposentado por incapacidade permanente na data do óbito, acrescida de cotas de 10 (dez) pontos percentuais por dependente, até o máximo de 100% (cem por cento).
§ 6º Equiparam-se a filho, para fins de recebimento da pensão por morte, exclusivamente o enteado e o menor tutelado, desde que comprovada a dependência econômica.
 
De fato, esse dispositivo constitucional não foi objeto das ADIs em tela, e portanto não poderia ter sido apreciada a constitucionalidade desses dispositivos da Reforma Previdenciária, em atenção ao princípio da adstrição ao pedido.
 
Contudo, é nítido que a mesma ratio decidendi trazida no teor da ADI 4878 poderá ser aplicada em outros processos, onde se discuta a dependência previdenciária dos “menores sob guarda”, seja na via de controle concentrado de constitucionalidade, seja na via difusa, isto é, na discussão do caso concreto.
 
Da mesma sorte, esse conteúdo estabelecido na ADI 4878 (dependência previdenciária dos “menores sob guarda”) pode ser levado também aos RPPS, que devem seguir o mesmo arranjo do RGPS em relação ao rol de beneficiários, por obra do art. 5º, da Lei 9.717/98.
 
Por todos estes aspectos que mencionamos acima compreende-se que a decisão proferida na ADI 4.878/DF é bastante relevante, não somente pela preservação da condição de dependente previdenciário dos “menores sob guarda”, mas por todos os demais elementos que ali estão contidos, especialmente quando sublinha a presunção de boa-fé dos segurados e dependentes, ou quando aponta para eventuais problemas de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 103/2019.
 
*Marco Aurélio Serau Junior é Advogado. Doutor e Mestre pela USP. Coordenador Científico do IEPREV. Professor da UFPR. Autor.
 
 


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