Repercussões trabalhistas e previdenciárias do Estatuto da Pessoa com Câncer

 
Marco Aurélio Serau Junior*
 
O IEPREV – Instituto de Estudos e Pesquisas em Direito Previdenciário, em cumprimento às suas finalidades de discussão e difusão científica a respeito desse direito fundamental social, vem a público emitir algumas considerações técnicas a respeito da Lei 14.238/2021 – Estatuto da pessoa com câncer.
Veio a lume em 19/11/2021 a Lei 14.238, que instituiu o Estatuto da Pessoa com Câncer. 
 
Em linhas gerais trata-se de um diploma legal que busca assegurar os direitos da pessoa com câncer, especialmente no que se refere à saúde. Mas o Estatuto ainda traz outros diversos temas.
 
Nesse sentido, vislumbramos que não trouxe um verdadeiro conjunto de novos direitos, tal como ocorreu como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) e com o Estatuto do Idoso (Lei 10.743/2003), diplomas legais que compõem efetivamente a noção de um estatuto, isto é, um conjunto sistemático e organizado de novas regras e direitos estabelecidos dentro de um determinado escopo.
 
A nosso ver, o Estatuto da Pessoa com Câncer, tirante os direitos relativos à saúde da pessoa humana (matéria que não será objeto deste artigo), apenas evidencia e reafirma direitos já existentes no ordenamento jurídico, inclusive os aspectos trabalhistas e previdenciários que procuraremos abordar neste texto.
 
Nesse sentido temos o inciso IV, do art. 3º, que estabelece que são objetivos essenciais do Estatuto “garantir o cumprimento da legislação vigente com vistas a reduzir as dificuldades da pessoa com câncer desde o diagnóstico até a realização do tratamento”.
 
Vamos abordar agora algumas repercussões de cunho trabalhista e previdenciário que podemos encontrar no Estatuto da Pessoa com Câncer. O art. 3º desse diploma legal traz seus objetivos essenciais:
 
Art. 3º São objetivos essenciais deste Estatuto: 
(...)
VIII - fomentar a criação e o fortalecimento de políticas públicas de prevenção e combate ao câncer; 
(...)
XIV - reduzir a incidência da doença por meio de ações de prevenção;
 
Esses incisos VIII e XIV fazem menção à criação e fortalecimento de políticas públicas de prevenção ao câncer, bem como à redução da incidência da doença por meio de ações de prevenção.
 
A prevenção, no que diz respeito ao Direito do Trabalho, pode ser obtida (ou no mínimo pode haver uma grande contribuição) por meio de investimento no Meio Ambiente do Trabalho, direito assegurado nos artigos 7º, inciso XXII, e 227, da Constituição da República, bem como na CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas (artigos 159 e seguintes, que tratam da SST – Segurança e Saúde no Trabalho). 
 
Entra nessa temática o pagamento dos adicionais de insalubridade e periculosidade, bem como o fornecimento de EPI – Equipamento de Proteção Individual e instalação de EPC – Equipamentos de Proteção Coletiva.
 
O aspecto preventivo tratado no art. 3º, incisos VIII e XIV, do Estatuto, também encontra reflexo no Direito Previdenciário, especialmente no que diz respeito às aposentadorias especiais, aquelas decorrentes da exposição do trabalhador a agentes nocivos de tipo biológico, químico ou físico, nos termos do art. 201, § 1º, I, da Constituição da República. 
 
A concessão da aposentadoria especial, que demanda menor tempo de contribuição e idades mais baixas do que o normal, exige da empresa contribuições previdenciárias adicionais (art. 22, inciso II, da Lei 8.212/1991), as quais dão lastro econômico a esse formato diferenciado de aposentadoria (atendendo ao princípio constitucional do equilíbrio financeiro-atuarial). 
 
Tais contribuições previdenciárias adicionais, porém, poderão ser majoradas ou diminuídas conforme o art. 10, da Lei 10.666/2003:
 
Art. 10. A alíquota de contribuição de um, dois ou três por cento, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até cinqüenta por cento, ou aumentada, em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de freqüência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social.
 
Essa variação de carga contributiva decorre, justamente, do maior ou menor grau de investimento na prevenção de riscos laborais. 
 
E é sabido que muitas das atividades especiais são potencialmente causadoras de câncer (configurando inclusive doença do trabalho ou doença laboral, conforme artigos 19 e 20 da Lei 8.213/1991), justamente pela exposição aos agentes nocivos. Portanto, esse caminho da prevenção ao câncer – atuação da empresa que não fique limitada à prevenção de acidentes - se enquadra perfeitamente nos objetivos essenciais do Estatuto da Pessoa com Câncer.
 
De outra parte, devemos examinar o art. 4º, incisos IV e VI, do Estatuto da Pessoa com Câncer:
 
Art. 4º São direitos fundamentais da pessoa com câncer: 
IV - assistência social e jurídica;
(...)
VI - proteção do seu bem-estar pessoal, social e econômico;
 
A assistência jurídica, conforme o art. 8º, § 2º, do próprio Estatuto, menciona expressamente apenas os benefícios fiscais devidos à pessoa com câncer:
 
§ 2º O poder público estimulará, por meio de assistência jurídica, o conhecimento e o acesso aos incentivos fiscais e aos subsídios devidos à pessoa com câncer
 
Todavia, compreendemos que esse elemento de assistência jurídica deve ser interpretado mais amplamente e, assim, também envolver o serviço social do INSS, tratado no art. 88, da Lei 8.213/1991:
 
Art. 88. Compete ao Serviço Social esclarecer junto aos beneficiários seus direitos sociais e os meios de exercê-los e estabelecer conjuntamente com eles o processo de solução dos problemas que emergirem da sua relação com a Previdência Social, tanto no âmbito interno da instituição como na dinâmica da sociedade.
 
Além disso, o poder público deverá promover o acesso da pessoa com câncer ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Poder Judiciário em todas suas instâncias (art. 8º, § 1º, do Estatuto).
 
Por outro lado, no que diz respeito à proteção do bem-estar pessoal, social e econômico da pessoa com câncer (art. 4º, inciso VI, da Lei 14.238/2021), compreendemos que um mecanismo importante para que isso seja alcançado é justamente a concessão dos devidos benefícios previdenciários (auxílio por incapacidade temporária ou mesmo aposentadoria por incapacidade para o trabalho), os quais tem o condão de promover esse conforto pessoal, social e sobretudo econômico.
 
Ainda nesse tocante, deve-se lembrar que o art. 45 da Lei 8.213/1991 prevê um adicional de 25% para aquele aposentado por incapacidade para o trabalho que dependa de cuidados integrais de outrem.
 
Também algumas garantias trabalhistas podem cooperar nesse sentido, tais como afastamento remunerado do trabalho para consultas (art. 473, inciso XII, da CLT), bem como licenças-médicas remuneradas eventualmente previstas em convenção ou acordo coletivo do trabalho (vide artigo 63 da Lei 8.213/1991).
 
A assistência social mencionada no art. 4º, inciso IV, da Lei 14.238/2021, será prestada de modo articulado com as demais políticas assistenciais tratadas na Lei Orgânica da Assistência Social, bem como em plena conformidade a suas diretrizes e princípios estruturantes:
 
Art. 8º O direito à assistência social, previsto no inciso IV do caput do art. 4º desta Lei, será prestado de forma articulada e com base nos princípios e diretrizes previstos na Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), de forma harmonizada com as demais políticas sociais, observadas as demais normas pertinentes.
 
De fato, já tivemos a oportunidade de mencionar que: 
 
“A Lei 8.742/1993 é a norma jurídica de organização geral da Assistência Social, não se limitando a respeito do benefício de prestação continuada (BPC) previsto na CF/1988, art. 203, V.
 
A legislação estadual, distrital e municipal também poderá dispor a respeito das políticas locais de assistência social, até mesmo para atender ao princípio constitucional da descentralização (CF/1988, art. 194, parágrafo único, VII).
 
A assistência social é um direito fundamental e, portanto, segue a lógica da interpretação expansiva, quer dizer, trata-se de direito fundamental social que não pode ser restringido indevidamente, para menos do que disposto na Constituição Federal, mas pode ser expandido, para além do texto constitucional e da atual legislação. Assim, legislação futura poderá introduzir, na medida das possibilidades orçamentárias, políticas assistenciais que abarquem outras hipóteses de contingências sociais – até mesmo em atendimento ao princípio da universalidade da Seguridade Social (CF/1988, art. 194, parágrafo único, I).”
 
(Comentários à Lei Orgânica da Assistência Social, 2ª ed., Curitiba: Juruá, 2021, p. 19)
 
Sem a menor pretensão de esgotar o tema compreendemos que foram apresentadas algumas possíveis e relevantes repercussões trabalhistas e previdenciários do recém promulgado Estatuto da Pessoa com Câncer.
Belo Horizonte, 26 de Novembro de 2021. 
 
*Marco Aurélio Serau Junior é professor da UFPR. Advogado. Doutor e Mestre pela USP. Diretor Científico do IEPREV.  [email protected]
 
 
 

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