Motorista de aplicativo receberá 10% de cada viagem realizada para ressarcimento de itens de proteção

 
Seria razoável exigir que o motorista de aplicativo banque sozinho as medidas imprescindíveis à preservação de sua saúde e dos clientes durante a pandemia do coronavírus? Ou deve-se exigir a participação da empresa nas despesas? Essa foi a questão central enfrentada pelo juiz Glauco Rodrigues Becho, na 47ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, ao examinar e decidir uma ação ajuizada por um motorista contra a 99 Tecnologia, empresa que conecta motoristas a usuários de serviços de transporte urbano.
 
O profissional formulou vários pedidos relacionados a medidas de prevenção, como fornecimento de materiais e custeio de higienização de veículos. Por sua vez, a empresa alegou já ter adotado medidas voluntárias, por mera liberalidade e responsabilidade social. Entre essas, a criação de um fundo de 10 milhões de dólares pela empresa chinesa dona da 99 e parceria com startup para desinfecção de veículos, além de fornecimento de orientações de higiene e saúde por meio de podcasts e vídeos. A reclamada também afirmou que irá doar mais de meio milhão de máscaras laváveis para motoristas parceiros que circulam por 16 capitais do país, inclusive Belo Horizonte.
 
O juiz entendeu que a 99 deve auxiliar o motorista nas despesas com itens de higienização. “É dever da ré participar das ações para promoção da saúde e proteção do prestador de serviços, devendo ser observada a excepcionalidade decorrente da pandemia e a modalidade de pactuação entre as partes, com divisão de valores em percentuais entre o motorista e a plataforma, inexistindo contato habitual suficiente para se viabilizar entrega de equipamentos condizentes com cada um dos serviços prestados”, destacou.
 
As pretensões foram julgadas parcialmente procedentes, concedendo-se tutela de urgência na decisão, que determinou que a empresa suporte parte das despesas com itens requeridos, quais sejam, máscaras, luvas, álcool em gel e higienização do veículo. Para tanto, o juiz decidiu que a reclamada deverá repassar ao motorista o equivalente a 10% do total de cada viagem realizada pela plataforma, a partir de 1/5/20, enquanto perdurar a situação de emergência de saúde decretada pela União, 
 
Estado de Minas Gerais e Municípios, observada a competência concorrente, reconhecida pelo STF no julgamento da ADI 6341. Foi fixada multa de R$ 70,00 por dia em caso de descumprimento, esclarecendo o julgador que, se a situação de fato ou de direito for alterada, a 99 deverá requerer a revisão da questão jurídica.
 
O magistrado reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para apreciar a demanda, nos termos do artigo 114 da Constituição, com amparo no entendimento consubstanciado na Súmula 736 do STF, segundo a qual “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”.
 
Nos fundamentos, observou que, mesmo não se tratando de vínculo de emprego, a relação de trabalho em sentido lato, pessoal, justifica a atuação da Justiça do Trabalho. A controvérsia, no caso, está relacionada à observância organizacional de normas gerais de segurança e saúde no trabalho.Pelo termo de uso apresentado pela reclamada, concluiu que a empresa não aufere lucros a partir da simples oferta do aplicativo para cidadãos e motoristas. O lucro decorre diretamente do trabalho pessoal do motorista, por meio de percentual dos valores quitados pelos clientes, para transporte, a partir de preço fixado pela empresa.
 
Para o magistrado, não se trata, assim, de simples relação comercial capaz de afastar a atuação da Justiça do Trabalho, diante da amplitude da competência constitucional fixada no artigo 114 da Constituição, principalmente em se tratando de questão atinente à saúde e segurança.
 
Ele observou, ainda, que a ausência de vínculo empregatício e a relação pautada primordialmente por norma civilista nunca afastaram a competência da Justiça do Trabalho, quando a prestação é pessoal. Como exemplo, citou o caso dos representantes comerciais e engenheiros em administração de obras, para não se resumir ao pequeno empreiteiro, cuja competência sempre esteve fixada no artigo 652, alínea “a”, inciso III da CLT. Na decisão, citou entendimentos do TRT de Minas.
 
Ainda segundo o julgador, a 99 não pode se valer da tecnologia e inovação para inviabilizar a conclusão lógica de que seu empreendimento depende diretamente da força de trabalho dos motoristas, ainda que sem o reconhecimento de relação empregatícia, mas em nítida relação de trabalho.
 
Legislação e reconhecimento da figura do trabalhador – Em reforço aos fundamentos, o juiz chamou a atenção para o fato de o Congresso Nacional, no Projeto de Lei nº 873/20, alterando a Lei º 13.982/20 (auxílio emergencial em razão da pandemia), ter aprovado a inclusão expressa dos motoristas de aplicativo no rol de trabalhadores. 
 
Na mesma linha, a alteração legislativa promovida pela Lei nº 13.640/18, incluindo novo inciso X ao artigo 4º da Lei nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, reconhecendo a natureza de transporte privado à atividade objeto da relação entre as partes.
 
Ademais, foi incluído o artigo 11-A na Lei nº 12.587/12, atribuindo competência regulatória aos municípios, bem como fixando a exigência de inscrição dos motoristas como contribuintes obrigatórios do INSS, na modalidade “individuais” (artigo 11, V, “h” da Lei 8213/91). O artigo 2º da Lei Municipal de Belo Horizonte nº 11.185/19 fixou expressamente como serviço de transporte individual privado “o serviço prestado por pessoa jurídica, mediante autorização, por meio de plataformas digitais”, bem como determinou a inscrição obrigatória do motorista perante o INSS, artigo 12, VI.
 
“Frente aos elementos acima, incontestável a relação de trabalho mantida entre as partes, de forma pessoal, rejeitando-se a arguição de incompetência absoluta em razão da matéria, reafirmando-se a competência deste juízo”, concluiu.
 
Saúde e segurança do trabalhador
 
Ao adentrar no mérito, o juiz rebateu a tese de que não haveria previsão legal para fixação das medidas 
pretendidas pelo autor. Segundo apontou, os princípios constitucionais da livre iniciativa (artigo 170), o direito à propriedade (inciso II) e a livre concorrência (inciso IV) não são absolutos, conforme ressalva constitucional expressa. “A ordem econômica se funda, primordialmente, na valorização do trabalho humano, tendo por objetivo a existência digna, conforme os ditames da justiça social”, destacou, acrescentando que a diretriz fixada constitucionalmente determina, em complemento, a observância do princípio da função social da propriedade.
 
“Tratando-se de matéria atinente à saúde, conforme dispositivos acima, a ré não pode se eximir de suas obrigações alegando os princípios da livre iniciativa, da legalidade, da livre concorrência e ao direito de propriedade, pois este não é absoluto, já que tem por norte a realização de existência digna de todos e da justiça social, tendo, ainda, o dever legal (Código de Saúde) de promover a saúde e proteger os seus ‘motoristas parceiros’”, destacou.
 
Na forma do artigo 196 da Constituição, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. O artigo 2º da Lei nº 8.080/90 efetiva o direito fundamental, fixando, expressamente, que o dever do Estado não exclui o das empresas (função social).
 
Como pontuado na decisão, essas normas não se resumem à proteção de empregados celetistas, mas sim de toda a sociedade. A Lei Estadual nº 13.317/99 (Código de Saúde do Estado de Minas Gerais), considerou como trabalhador a ser tutelado todo aquele que exerça atividade produtiva ou de prestação de serviços, ainda que no setor informal da economia.
 
Para Glauco Rodrigues Becho, a excepcionalidade decorrente de uma pandemia, com calamidade pública e estado de emergência em saúde, decretados pela União, Estado de Minas Gerais e Município de Belo Horizonte, é perfeitamente hábil a justificar a exceção prevista no parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, cujo conteúdo é o seguinte: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)”. Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)”
 
Essa excepcionalidade, permissiva à revisão contratual, de forma limitada, encontra amparo inclusive no artigo 421-A, inciso III: “Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019). III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)”.
 
Com esses fundamentos, entendeu que o motorista não pode suportar isoladamente as despesas, ponderando que, caso não mais se ative no aplicativo por ausência de condições e risco à saúde, sofrerá abrupta queda em seus rendimentos (além da queda natural advinda do presente cenário). No caso, a empresa não provou documentalmente a efetivação das medidas anunciadas em prol do autor, resumindo-se a demonstrar suas políticas programáticas de atuação no cenário.
 
A solução encontrada para o caso foi exigir da reclamada a participação nas despesas para proteção do prestador, mas somente no caso de trabalho em seu proveito. Desse modo, o magistrado julgou parcialmente procedentes as pretensões do motorista, considerando razoável e justo, para efetivar a promoção à saúde e a função social da propriedade (artigos 8º e 375 do CPC), definir o seguinte: a cada prestação de serviços efetivamente concluída por ele (transporte), a partir de ativação no aplicativo, assegurando percentual à empresa, deverá ser ressarcido em quantia razoável para pagamento das despesas com luvas, máscaras, álcool em gel e higienização do veículo. Ao motorista caberá, considerando a especificidade da relação, adquirir os materiais para uso pessoal e providenciar a higienização do automóvel.
 
Foi arbitrado o equivalente ao percentual de 10% a cada viagem efetivamente cumprida, a ser repassado ao autor para cobrir as despesas com os materiais e higienização, através do mesmo sistema e procedimento para pagamento dos valores devidos ao motorista, conforme “termo de uso”. O magistrado levou em conta o patamar de contraprestação mensal mencionado pelo autor e não impugnado pela ré.
 
Para afastar dúvidas, o juiz deu o exemplo de uma viagem no valor de R$ 40,00. Nesse caso, segundo ele, deverá ser calculado e quitado ao autor o importe de R$ 4,00, sem prejuízo de seu percentual integral sobre o importe total.
 
Vale dizer, hipoteticamente, se aplicável a divisão ordinária de 75% (motorista) / 25% (plataforma) em uma viagem, no caso o motorista deverá receber R$ 30,00 (75% – seu percentual) e R$ 4,00 (10% – participação da ré para promoção da saúde para viabilizar as compras dos itens acatados). O mesmo procedimento deverá ser observado seja qual for a previsão de repartição dos valores entre as partes, inclusive viagens promocionais, sempre destacando-se o percentual de 10% para ressarcimento das despesas excepcionais. Com informações do TRT-MG
 


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