Retrospectiva previdenciária de 2020

 
Marco Aurélio Serau Junior* e Roberto de Carvalho Santos**
 
A não-regulamentação da Emenda Constitucional 103/2019 e a “portarização” do Direito Previdenciário
 
O primeiro fato marcante do Direito Previdenciário em 2020 é, contraditoriamente, uma omissão normativa.
Após longo debate legislativo, que ocupou praticamente toda a pauta política de 2019, a Reforma Previdenciária foi aprovada e entrou em vigor em 13.11.2019.
 
Muitos de seus temas careciam (e ainda carecem) da devida regulamentação, seja por via de Lei Complementar, seja por via de legislação ordinária.
 
Ocorre que não se vislumbrou esse movimento subsequente de alteração do Direito Previdenciário – talvez porque a Emenda Constitucional 103/2019 tenha trazido uma nova arquitetura constitucional repleta de inúmeras regras transitórias sobre inúmeros temas (alíquotas de contribuição previdenciária no RGPS e no RPPS; fixação de requisitos para aposentadoria; regras de cálculo dos benefícios previdenciários e das cotas de pensão, dentre outros).
 
Em decorrência disso vislumbra-se um segundo fato marcante no Direito Previdenciário, que podemos ilustrar com a expressão (obviamente irônica) da “portarização” do Direito Previdenciário.
 
Com essa expressão quis-se indicar o uso abusivo das normas infralegais (Portarias, Instruções Normativas, Ofícios Circulares, etc) para a regulamentação de institutos de Direito Previdenciário – algo que foi fato notório em 2020.
 
A primeira vez em que esse fenômeno pode ser apreciado decorreu da Portaria 450/2019, que pretendeu “regulamentar” a Emenda Constitucional 103/2019. Na sequência desta muitas outras foram editadas, com os mais variados temas, mostrando uma tendência, ao longo de 2020, dessa perspectiva do uso intensificado das normas infralegais.
 
O ápice desse movimento residiu na edição do Decreto 10.410/2020, que pode ser considerado, na prática, um Novo Regulamento da Previdência Social. A utilização das normas infralegais é extremamente relevante para a prática cotidiana da administração previdenciária, visto que se trata de órgão público (o INSS) vinculado ao princípio da estrita legalidade e, assim, necessita de parâmetros bem definidos para sua atuação.
 
Porém, o que se critica como um uso abusivo de normas infralegais é o fato de que a regulamentação originária de muitos temas de Direito Previdenciário deveria vir pela perspectiva da lei, em sentido estrito, votada e aprovada pelo Congresso Nacional.
 
Não se trata somente de “regulamentar questões técnicas”, mas, antes disso, de ocorrer o processo de diálogo social e de escolhas públicas em torno do alcance dos institutos jurídicos – aproveitando o espaço democrático do Congresso Nacional, onde é possível e frequente a realização de audiências públicas e oitiva de diversos segmentos da sociedade.
 
Por fim, quanto a este movimento de não-regulamentação da Emenda Constitucional 103/2019 e portarização do Direito Previdenciário, é necessário frisar que o conteúdo de muitas dessas normas infralegais é evidentemente inconstitucional e ilegal, por extrapolar o papel reservado a esse tipo de ato normativo (conforme previsão do art. 84, inciso IV, da Constituição Federal).
 
A MP 905/2019
 
A MP 905/2019 foi editada no mesmo dia em que entrou em vigor a Emenda Constitucional 103/2019 e, talvez por isso, não tenha merecido a devida atenção.
 
Além de criar uma nova figura trabalhista, o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo (onde a maior parte das cláusulas do contrato individual de trabalho seriam negociadas por sobre as previsões legais), a MP 905/2019 trouxe algumas modificações no campo previdenciário.
 
Extinguiu o acidente de trabalho ocorrido no trajeto do domicílio para o trabalho (na esteira da modificação que a Reforma Trabalhista já havia efetuado na CLT, através da alteração do art. 58 § 2º, com a extinção da jornada de trabalho in itinere) e operou restrições ao benefício de auxílio-acidente.
 
No mais, criou a figura do segurado obrigatório desempregado, isto é, aquele que estivesse sendo contemplado com o benefício de seguro-desemprego, onde incidiria uma contribuição previdenciária de duvidosa constitucionalidade, o que permitir o reconhecimento de sua qualidade de segurado e a prorrogação do período de graça.
 
A falta de consenso político em torno da aprovação da figura do contrato de trabalho verde e amarelo e outros temas trabalhistas trazidos pela MP 905/2019 impediu o Congresso Nacional de convertê-la em lei e, assim, houve sua revogação através da Medida Provisória 955/2020, ensejando inúmeros problemas hermenêuticos em relação à sua vigência temporal e a projeção de seus efeitos para o futuro.
 
O vaivém normativo do BPC da Assistência Social
 
A concessão do BPC da Lei Orgânica da Assistência Social (art. 20, da Lei 8.472/93) é um dos temas mais debatidos na jurisdição previdenciária, especialmente a impugnação ao critério de renda familiar mensal per capita.
Ora, é sabido que há tempos, a partir de sólidos fundamentos, a jurisprudência vem admitindo a flexibilização do critério de ¼ de salário mínimo previsto no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 (especialmente a partir da Reclamação 4.374/PE no STF e pelo Recurso Especial repetitivo 1.112.557/MG, no STJ).
 
A Lei 13.981/2020, buscando internalizar no âmbito legislativo esse avanço jurisprudencial, modificou o critério de renda do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, para ½ salário mínimo, o que certamente traria diminuição da judicialização em torno desse benefício.
 
Porém, poucos dias após sua edição, esse parâmetro normativo foi alterado pela Lei 13.982/2020 - que é mais conhecida por ter criado o auxílio emergencial -  e foi revigorado ao longo de 2020 o critério de ¼ de salário mínimo para a renda mensal familiar per capita.
 
A partir de 1.1.2021 o critério de ½ salário mínimo tornaria a ser utilizado para a concessão do BPC. Todavia, esse inciso do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, com a redação dada pela Lei 13.982/2020 foi vetado pela Presidência da República.
 
Esse veto pode tornar o art. 203, inciso V, da Constituição Federal de 1988, norma não auto-aplicável a partir de 1.1.2021, pois este sempre foi o entendimento do STF a respeito desse dispositivo constitucional – o que fica bem evidente no julgamento da constitucionalidade da redação original do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, cuja fundamentação sublinhou a necessidade de regulamentação daquela norma constitucional.
 
Portanto, ressalta-se o retorno ao parâmetro de renda para concessão do BPC-LOAS fixado em ¼ de salário mínimo e a possibilidade bastante palpável de, no próximo ano, esse benefício não poder mais ser concedido administrativamente por ausência de norma regulamentar – alterando um pouco a judicialização desse tema.
 
Direito Previdenciário “Emergencial”
 
O cenário de confinamento social decorrente da disseminação do novo coronavírus (COVID-19) ensejou a edição de uma profusa legislação emergencial, em diversos campos do Direito.
 
O Direito Previdenciário não ficou de fora desse processo, seja por obra de suas próprias modificações normativas e estruturais, seja diante dos reflexos previdenciários da legislação emergencial de Direito do Trabalho.
 
Cremos que o primeiro fato marcante a ser retratado é o fechamento das agências do INSS logo nos momentos iniciais do confinamento social. Isso levou a uma intensificação do processo de migração de formato do processo administrativo físico para o modelo de processo eletrônico previdenciário (atendimento virtual da população via programa Meu INSS).
 
Neste aspecto, ressaltam-se as críticas à pretensão de teleperícias em matéria de benefícios por incapacidade, mas podem ser elogiadas as perspectivas de antecipação do benefício de BPC e auxílio-doença, bem como a própria concessão do auxílio-doença a partir de uma base documental, medidas trazidas pela Lei 13.982/2020.
A fim de desonerar parcialmente as empresas, a Lei 13.982/2020 estabeleceu que os primeiros 15 dias de afastamento dos empregados, em virtude de contaminação comprovada por COVID-19, seriam arcados pelo INSS, através de um mecanismo similar ao do benefício de salário-maternidade (pagamento imediato pelas empresas e 
posterior compensação com suas contribuições previdenciárias).
 
Por fim, nesse tópico, não se pode desprezar a criação do auxílio emergencial através da Lei 13.982/2020 – em que pese não se tratar propriamente de benefício da Previdência Social, mas assistencial, obviamente componente da Seguridade Social.
 
A profusa jurisprudência previdenciária de 2020
 
Se houve uma notável omissão legislativa em matéria previdenciária, o mesmo não se pode alegar em relação à atuação da jurisdição previdenciária, bastante profícua ao longo de 2020.
 
Muitos temas relevantes, notoriamente dotados de força vinculante, foram apreciados e definidos pela TNU, pelo STJ e pelo STF.
 
Dentre tantos e tantos temas que poderiam ser elencados, mencionamos os seguintes: Tema 709 do STF (continuidade na atividade insalubre do segurado que obteve aposentadoria especial); ADI 6096 (afastamento da decadência para discussão do indeferimento de benefício previdenciário); Tema 942 do STF (contagem de tempo especial e aproveitamento no RPPS); Tema 1031 do STJ (aposentadoria especial dos vigilantes, armados ou não); Tema 1030 do STJ (renúncia dos valores excedentes a 60 salários mínimos e fixação da competência dos Juizados Especiais).
 
Muitos outros foram sobrestados e inseridos no regime dos recursos repetitivos, já indicando uma atividade judicante significativa em matéria previdenciária para o vindouro ano de 2021.
 
Torcemos que o ano de 2021 seja mais alvissareiro que este que vai se encerrando, e desejamos a todos os que acompanham e participam dos diversos cursos e eventos do IEPREV tenham um final de ano abençoado.
 
*Marco Aurélio Serau Junior é Diretor Científico do IEPREV
 
**Roberto de Carvalho Santos é presidente do IEPREV
 


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