Empregado soropositivo: estabilidade eterna?

Mirna Alonso e Rodrigo Martini*

Cerca de 30 anos após os primeiros casos de AIDS noticiados no Brasil, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) editou a Súmula 443, segundo a qual, em se tratando de dispensa de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave, é do empregador o ônus da prova quanto a não discriminação de seu ato.         

Consoante o entendimento atual, há presunção favorável ao empregado de que é discriminatória a demissão do portador do vírus HIV, o que se estende, analogamente, a outras doenças graves, tais como o câncer e até mesmo a dependência química, patologias que, em tese, suscitam estigma ou preconceito.

Por um lado, a atividade empresarial deve cumprir sua função social, um dos pilares do dito Estado moderno, buscando, desse modo, um ponto de equilíbrio entre seus fins lucrativos e o tão propalado bem-estar social.

Levando-se em conta o alto grau de competitividade das empresas, seria justo manter uma eterna estabilidade dos empregados portadores do vírus HIV, mesmo daqueles cujo rendimento se apresente como sofrível? Ou demitir um empregado em tais condições seria o mesmo que o condenar à morte, uma vez que grande parte deles vislumbra no trabalho sua única possibilidade de manter um nível de vida minimamente satisfatório?

Conquanto a presunção de uma dispensa discriminatória seja favorável ao empregado, há de se considerar muito criteriosamente a situação fática em tela.          Sem essa necessária relativização, a fatalidade da contaminação determinaria a vinculação perpétua do empregado à empresa, independente de seu rendimento e dedicação. Ademais, as avaliações de desempenho dos envolvidos far-se-iam prescindíveis, uma vez que o aspecto da segregação certamente seria trazido à baila. Outro aspecto que merece relevo é o conhecimento – ou não – da doença por parte do empregador.

Quando, no início dos anos 1980, o vírus foi descoberto e seu tratamento era extremamente difícil, o portador da síndrome em estágio mais avançado apresentava, invariavelmente, rosto encovado, nível insuficiente de gordura corpórea e profundo abatimento físico.

Poucos são os que não se recordam de figuras públicas admiradas pelo povo brasileiro que sucumbiram à doença, como Agenor Cazuza, Renato Russo, Lauro Corona, Sandra Bréa, dentre tantos outros. Talvez, à época, os conhecimentos prévios quanto à doença, não somente pelo possível empregador como também pela sociedade em geral, seria mais facilmente atestado. Entretanto, nos últimos anos, a imagem da AIDS modificou-se substantivamente em razão da descoberta e aperfeiçoamento dos antirretrovirais, medicamentos muito mais eficazes que os existentes até meados dos anos 1990.

Graças às novas medicações, a AIDS transformou-se em uma doença, não obstante crônica, controlável, o que permite aos pacientes levar uma vida considerada normal, sobretudo no âmbito profissional. É notória, assim, a controvérsia, no mundo jurídico trabalhista, no que concerne ao ato da dispensa de um empregado portador de doença grave, como a AIDS.    

 Além de se questionar se haveria, pela empresa, o “conhecimento” ou não da doença, discutir-se-iam os reais motivos que provocaram o desligamento: baseiam-se esses motivos em fatores técnico-objetivos, na situação econômica da empresa e no rendimento técnico do empregado, ou fundados estariam na inaceitável intenção da instituição privada de se livrar do que consideraria um problema? Retratada a situação do ex-empregado como portador do vírus HIV, há apenas a presunção, não absoluta, de ato discriminatório.

De acordo com a Súmula 443 do colendo TST, a presunção favorável ao empregado sucumbe se comprovado que, à época da dispensa, a empresa desconhecia a patologia que o acometia ou se, por meio de dados concretos, afirma que o insuficiente desempenho profissional do empregado - desempenho não comprometido pela doença - constituiu fator determinante para o seu desligamento.

Ao magistrado, por seu turno, compete avaliar se a dispensa decorreu do direito potestativo do empregador em desligar, sem justa causa, o empregado - o que ocorre por inúmeros motivos concernentes à lógica empresarial - ou se, de fato, teria esta sido motivada pela existência, manifestação ou agravamento da doença, assegurando-se ao prejudicado o direito à reintegração ao emprego, além de uma indenização de cunho moral.

Em uma análise mais simplista, que longe está de pacificar a questão, na hipótese de haver dois empregados em patamar equivalente de rendimento e produtividade - um soropositivo e outro não - e a imperiosa necessidade de dispensa de um deles, deverá a empresa optar pelo segundo funcionário.

Sendo discriminatória a despedida do empregado portador de doença grave, cabe às empresas, diante da notória função social que exercem, o dever de assumir postura condizente com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e de valorização do trabalho, mantendo-se o vínculo empregatício, que, nesses casos, deve ser considerado em conformidade com o que prevê a Carta Constitucional de 1988 em seus artigos 5º, XXIII, e 170, III. De outro lado, aos empregados exige-se desempenho profissional satisfatório, pois o que a legislação protege é a dispensa discriminatória, não a ociosidade remunerada.

Mencionem-se, nesse sentido, os exemplos de brilhantes profissionais, que, mesmo enfrentando doenças graves, continuaram – e continuam – colaborando para a valorização da vida e do trabalho, como Earvin "Magic" Johnson Jr., que, após anunciar ter contraído o vírus, há mais de duas décadas, sagrou-se campeão olímpico em Barcelona, em 1992, tornando-se símbolo de enfrentamento e resistência ao vírus.

Outro grande exemplo foi Herbert José de Sousa, o “Betinho”, sociólogo e ativista de direitos humanos e de combate à fome, figura que, mesmo com a saúde debilitada, trabalhou durante longos anos, chegando, inclusive, a fundar e presidir a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS.

A estabilidade não é eterna; porém, não havendo alternativa senão a dispensa do empregado portador do vírus, a empresa deve acautelar-se com sólida prova documental e testemunhal para rechaçar a hipótese da discriminação, comprovando que a doença, em momento algum, influenciou em sua decisão, sob pena de condenação a pesadas indenizações por parte da justiça trabalhista.

* Mirna Alonso e Rodrigo Martini são advogados do escritório Rodrigues Jr. Advogados - ([email protected]) e ([email protected])



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