Os capítulos da judicialização da saúde

 
Sandra Franco*
 
Mais um capítulo da judicialização da saúde no Brasil vai ganhando contornos dramáticos. Após se posicionar contra o fornecimento de remédios sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello recuou no último dia 28 de setembro e alterou seu voto no julgamento sobre as responsabilidades do poder público na distribuição de medicamentos de alto custo à população. Pedido de vista de outro ministro da Corte, Teori Zavascki, suspendeu a análise dos casos. Ainda não se sabe quando o julgamento será retomado, nem quando a decisão final será anunciada. O drama continuará.
 
No dia 15 de setembro, o ministro Marco Aurélio havia se posicionado a favor de o Estado fornecer à população medicamentos de alto custo não incorporados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas condicionou a distribuição ao registro na Anvisa. Entretanto, mudou seu entendimento e decidiu votar na permissão do uso de medicamentos não registrados na Anvisa, desde que comprovada a sua indispensabilidade para a manutenção da saúde do paciente. A comprovação deve ser feita por laudo médico e a existência de registro do medicamento em seu país de origem.
 
O Supremo está discutindo casos que poderão servir de saída para milhares de pacientes que recorrem ao Judiciário para ter garantido tratamento adequado para seus problemas de saúde. No julgamento do STF, a primeira ação em julgamento foi movida pelo Estado do Rio Grande do Norte contra uma paciente pobre que conseguiu na Justiça o direito de ter remédio para o tratamento de hipertensão arterial pulmonar. Já o segundo é o de uma paciente que foi à Justiça para garantir o recebimento de medicamento não registrado na Anvisa para o tratamento de doença renal crônica.
 
Os casos serão julgados com repercussão geral, ou seja, a decisão proferida pelo STF será aplicada pelos juízes do país ao julgar pedidos idênticos. Caso venha realmente se manter esse viés positivo para os pacientes, o Judiciário continuará sendo inundado de novos casos relativos a medicamentos de alto custo, negativa de cirurgias, exames, entre outros problemas relacionados à saúde pública e à privada no Brasil.
 
A indicação é de que o colapso e o caos vivido no ambiente hospitalar poderá ser transferido para o Judiciário. Ou seja, a incompetência do Estado em dar uma saúde de qualidade, entre outros problemas sociais e econômicos do país, culminam em processos nos tribunais. Sem dúvida nenhuma, a maioria dos casos que estão em análise na Justiça derivam da má gestão da saúde no Brasil.
Uma pesquisa recente revelou que quase a metade das ações judiciais na área da saúde é proposta por doentes tentando exigir, do governo ou dos planos, o pagamento por tratamentos. A maioria dos pedidos é para conseguir medicamentos, que às vezes nem foram incorporados pelo SUS. Segundo o estudo da Interfarma, das quase 15 mil ações na área da saúde em São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais, quase a metade é de judicialização da saúde, quando a ação é para obrigar o poder público ou o plano de saúde a pagar por tratamento, hospitalização e medicamentos. Os remédios lideram estes pedidos: 64% das ações são para consegui-los.
 
A Justiça concede liminar em pelo menos 87% dos casos. O estudo cita como causas para a judicialização da saúde os cortes no orçamento e a demora para incorporar novas drogas no SUS.
 
E os números apresentados pelo Governo Federal assustam. R$ 5 bilhões foi o valor gasto por municípios, Estados e União com a judicialização em 2015.  O montante de R$ 7 bilhões é quanto governos deverão gastar em 2016, segundo o ministro da Saúde, Ricardo Barros. Porém, é importante destacar que culpar os números não irá resolver o problema e nem colocar debaixo do tapete os recorrentes erros de administração dos recursos financeiros da saúde. Ou se tomam medidas para começar a trilhar um caminho para o combate do caos, ou esses números serão crescentes.
 
Os holofotes estão voltados para reforma da Previdência, das relações trabalhistas, dos gastos públicos e até da educação, mas é a saúde. Não seria o momento oportuno para se propor uma reforma e ações de combate a má gestão dos gatos públicos na saúde, na reforma estrutural do sistema de saúde no país?
 
Economizar em saúde, ou na judicialização dela, significa investir em prevenção, em atendimento de qualidade, em programas sociais que incentivem o bem-estar do cidadão. Os casos que desaguam nos tribunais brasileiros já são aqueles em que os pacientes e suas famílias esgotaram seus recursos financeiros e morais pela solução. O paciente quer salvar, em primeiro lugar, seu bem maior, a vida.
 
*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde, doutoranda em Saúde Pública, presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) e membro do Comitê de Ética para pesquisa em seres humanos da UNESP (SJC) e presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde – [email protected]
 
 
 
 


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