Os pontos (obscuros) de ancoragem da nova reforma previdenciária-assistencial
Marco Aurélio Serau Junior* e José Ricardo Caetano Costa**
Pretendemos com este artigo refletir sobre aquilo que chamamos, à falta de uma expressão melhor, de “pontos de ancoragem” da nova proposta de reforma do sistema previdenciário-assistencial brasileiro.
Para tanto, enfocaremos quatro pontos que julgamos fundamentais para a reflexão pretendida, a saber: a) Rompimento do Solidarismo Social; b) Esvaziamento da Seguridade Social; c) Redução Drástica dos Valores dos Benefícios e, c) O Sistema de Gatilho Instituído.
O primeiro ponto é o mestre e guia de toda a arqueologia apesentada pela PEC n. 6/19. Trata-se da substituição, paulatina, do sistema de proteção social vigente desde as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), de corte bismarkiano, calcado na solidariedade social, pelo sistema privado de capitalização individual, aos moldes das conhecidas cadernetas de poupança. Este desiderato encontra-se no $ 6º do artigo 40 da CF: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municipios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A, no prazo e nos termos que vierem a ser estabelecidos na lei complementar federal de que trata o referido artigo.”.
A ideia de que este “novo modelo”, para usar a expressão utilizada pelo Ministro Paulo Guedes na exposição de motivos que acompanham o texto proposto (item 1, ao final), é de fortalecimento da poupança nacional, apontando que este modelo, à exemplo dos Estados Unidos (item 2, ao final), teríamos uma Constituição mais sintética e aprimorada.
Devemos, inicialmente, indagar se a população brasileira, especialmente os Deputados que a representam, pois são eles que irão apreciar inicialmente o modelo proposto, compreendem o que significa esta mudança de paradigma. Não se trata meramente de um jogo opositor entre solidarismo versus individualismo. Trata-se, isto sim, de avaliar a própria viabilidade de um sistema que é gestionado pelas instituições bancárias e financeiras, hoje as principais devedoras da Seguridade Social, em um pais de instabilidade institucional como o Brasil, em que a garantia do emprego está mais próxima à ficção, em que o Estado não possui o mínimo rigor na fiscalização e cobrança das obrigações empresariais e fiscais.
O segundo ponto nos reporta ao conceito de Seguridade Social constante na CF/88, como um conjunto integrado de ações que envolvem todos os entes e a sociedade civil, enquanto política pública redistributiva que abarca a Saúde, Previdência e Assistência Social. Nesta perspectiva trazida pela PEC em comento, a Previdência perde sua condição de política pública e social, passando a ser um mero sistema de poupança individual.
Esta novel sistemática encontra-se estampada claramente na redação dada ao artigo 201-A, em que o “novo regime de previdência social” será “organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de carácter obrigatório para quem aderir, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para pagamento do benefício.”
Insta indagar se os prefeitos, especialmente das cidades de pequeno e médio portes, já se indagaram dos efeitos deletérios da perda dos benefícios provindos da previdência e assistência social, que também será afetada diretamente, uma vez que em praticamente todos estes municípios superam os aportes do FPM?
Nesta estruturação nova proposta, a Assistência Social passa à condição de mera filantropia aos miseráveis, sem qualquer comunicação com o sistema previdenciário. Aliás, é de se frisar que o processo de habilitação profissional restou extirpado do novo sistema, atingindo diretamente os deficientes que dependem desse processo para a inserção no mundo do trabalho.
Gostariamos de chamar a atenção para o terceiro ponto, no que respeita aos valores dos benefícios. Isso porque a sistemática adotada pela PEC apresentada ao Congresso Nacional reafirma o Fator Previdenciário (Lei n. 987/99), unindo-o aos sistemas de pontos instituídos inicialmente pela Lei n. 13.183/15.
Façamos uma regressão histórica para entender o contexto destes dois mecanismos, para melhor compreender sua utilização combinada.
O Fator Previdenciário foi criado em fins de 2009, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, como uma forma de revidar a não utilização da idade mínima quando da edição da Emenda Constitucional n. 20/98. É uma metodologia às avezas em que o cálculo das rendas punem aqueles que começam cedo a trabalhar, ou seja, notadamente os mais pobres e vulneráveis. Perpassou por duas décadas, sendo amainado seus efeitos deletéritos pela Lei n. 13.183/15, promulgada ainda no Governo de Dilma Rousseff, que instituiu um pontuação conhecida como Fórmula 85/95. Segundo esta metodologia, os homens teriam que alcançar os 95 pontos e as mulheres os 85, não esquecendo que o mínimo de contribuição seria 35 e 30, respectivamente.
Com isso, mesmo diante do aumento gradativo da pontuação, que está atualmente em 86/96 pontos, os segurados poderiam obter uma valor melhor quando da aposentadoria, vez que não utiliza-se a alíquota do FP.
Com efeito, não há dúvidas que a Lei n. 13.183/15 foi uma forma de amainar os efeitos drásticos da Lei n. 9876/99, tão criticada, tão atacada, mas até então não revogada.
Pois bem. A PEC proposta, diferentemente da PEC 287/16 intentada anteriormente, solidifica e pereniza a metodologia do Fator Previdenciário, quando da utilização das 80% das maiores contribuições, de julho de 1994 até o pedido do benefício, agregando, ainda, em vários benefícios a pontuação trazida pela Lei n. 13.183/15, como requisito à obtenção das aposentadorias.
Esta sistemática encontra-se desde a regra de transição do RGPS para quem já está no sistema (35 anos contributivos para homem e 30 para mulher), mais 96 e 86 pontos respectivamente para ambos. E não para por ai: o aumento gradativo leva esta pontuação para 100 pontos (mulher) e 105 pontos (homem), em 2023, em pontuação antes não cogitada.
O mesmo ocorre para os servidores públicos, nas aposentadorias especiais dos deficientes e naquelas decorrentes do exercício de atividades nocivas à saúde (exceto todas as atividades periculosas e penosas, não consideradas como nocivas).
Não pode passar desapercebido, por seu turno, que a renda destes benefícios passam a ser de 60% da média aritmética simples, conforme a metodologia prevista no FP, acrescido de minguados 2% por ano trabalhado que excedam os 20 anos. Há de se frisar que a possiblidade da integralidade, para quem ingressou no serviço público antes de 31/12/03, torna-se praticamente impossível pela inclusão de idade mínima (tal como na regra de transição que exige no mínimo 60 anos para mulher e 65 anos para homem). Veja-se, neste exemplo, que a idade mínima para o requerimento é de 56 e 61 anos, respectivamente. Essa sistemática é por demais ardilosa e nociva: a servidora que possui os 56 anos pode se aposentar mas receberá, se não tiver os 60 anos, pouco mais da metade de seu salário.
Por fim, gostaríamos de chamar a atenção no “gatilho” utilizado em praticamente todos os benefícios previstos na PEC n. 6/19, inclusive nos assistenciais, repetidamente assim exposto: “Lei complementar estabelecerá a forma como a pontuação referida ... será ajustada após o término do período de majoração a que se refere o ...., quando o aumento na expectativa de sobrevida da população brasileira atingir os sessenta e cinco anos de idade.”
Com efeito, já temos suficientes estudos acumulados que nos permitem relativizar este critério trazido pelas tabelas do IBGE. Seja no que respeita a especificidade da população (vulnerável) que utiliza e depende destas políticas públicas, seja pela própria metodologia utilizada nestas aferições. Logo, se achamos absurdo retroagirmos a idade inicial de 70 anos para pedido dos benefícios assistenciais, assim como o era quando da edição da Lei n. 9872/93, essa idade pode ainda ser mais elevada futuramente.
*Marco Aurélio Serau Junior é Doutor em Direito pela USP e Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPr)
** José Ricardo Caetano Costa é Doutor em Serviço Social pela PUCRS e Professor Adjunto da Universidade Federal de Rio Grande. Advogado Previdenciarista.