A reforma da Previdência, a Constituição e a ameaça à justiça social
Erick Magalhães*
O Congresso Nacional discute atualmente a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 06/2019, elaborada pela equipe econômica do Governo Federal, que pretende realizar uma ampla reforma na Previdência Social, a qual impactará não só na sociedade como um todo, mas, especialmente na vida dos mais necessitados. Fala-se que a mudança, além de necessária para o país não “quebrar”, ainda será benéfica, pois reduzirá as desigualdades. Não há prova de nenhum dos argumentos.
Economistas se dividem entre a alegação do tamanho do déficit da Previdência e a constatação de que seria possível haver um superávit nas contas do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), caso a economia estivesse em crescimento. Além disso, o Governo decretou sigilo de documentos e não apresentou cálculo atuarial.
Segundo os dados econômicos divulgados, se aprovada, a Reforma da Previdência geraria uma suposta economia de 1,2 trilhão de reais no prazo de 10 anos. No entanto, o montante de 83% desta economia é atribuído à redução do Benefício de Prestação Continuada (BPC), o qual possui valor de um salário mínimo, e às medidas aplicadas ao regime geral de previdência social, (RGPS), o qual paga atualmente, em média, 1.252,00 aos aposentados por idade e R$ 2.231,00 aos aposentados por tempo de contribuição. Não se trata de “economia”, mas sim da subtração de direitos, que não contribuem com a redução de desigualdades.
Contudo, além do debate econômico, é fundamental analisar a partir de um olhar crítico do ponto de vista jurídico e avaliar as ameaças aos direitos fundamentais da população brasileira que estão embutidas na proposta do governo.
Na Constituição de 1988, o constituinte foi sábio ao encontrar o equilíbrio para pacificar questões relacionadas ao capital e ao social. O capital é retratado pelo art. 170, no qual é intitulado de “Ordem Econômica e Financeira” e diz que - “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, observando, entre os seus princípios, a “redução das desigualdades regionais e sociais”.
Já a questão social, por sua vez, está presente no art. 193, que determina que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
Mas, afinal, o que significa a presença desses dois trechos na Constituição Federal?
A redação dos dois artigos faz com que tanto a ordem econômica, quanto a ordem social, convirjam com a busca da justiça social e com a redução das desigualdades sociais, além de remeter aos fundamentos e objetivos inseridos nos artigos 1º ao 3 da Constituição Federal, bem como aos direitos e garantias individuais estatuídos nos artigos 5º e 6º da Carta Magna.
A proposta de Reforma da Previdência, por sua vez, infringe o direito ao trabalho e à Previdência Social, direitos sociais considerados garantias individuais fundamentais contidos no art. 6º da Constituição.
Isto porque o projeto de emenda à Carta Magna abre margem para a instituição de um sistema previdenciário de capitalização. Nele, não há a contribuição da cota parte do governo ou da cota parte do empregador. Apenas os trabalhadores são responsáveis por formarem contas individuais que serão, num futuro, destinadas à aposentadoria. O projeto ignora experiências em países vizinhos, como a do Chile, que demostraram que o modelo pode resultar em aposentadorias abaixo do salário mínimo, em mero lucro para instituições financeiras, responsáveis por gerir as contas, e até no aumento do índice de suicídio entre a população idosa. É impossível afirmar que este sistema respeita os artigos 6º e 170 da Constituição.
Outro ponto problemático na proposta do governo é a idade para se aposentar. A PEC traz uma idade mínima de 62 e 65 anos de trabalho para mulheres e homens, respectivamente. Ocorre que apenas 0,3% das pessoas com 65 anos ou mais ocupam vagas no mercado de trabalho. Logo, não havendo vagas de trabalho para a população com a idade de aposentadoria pretendida pelo governo, ou se insuficientes, certamente uma grande parcela da população não conseguirá cumprir com os requisitos exigidos na proposta de reforma.
Veja que o art. 6º da Carta Magna classifica o direito ao trabalho como um direito social e fundamental dos brasileiros. A partir disto, como pode exigir o governo tal idade mínima, se o brasileiro com 65 anos não consegue emprego e se não há emprego para toda a população nessa faixa etária?
Tanto o regime de capitalização quanto os requisitos de aposentadoria serão inalcançáveis para grande parte da população e, prevendo a possibilidade que a parcela mais pobre da população não consiga se aposentar, o governo propõe um Benefício de Prestação Continuada (BPC) no valor de R$ 400 para população idosa e miserável que atinge os 60 anos. Não será desse modo que a ordem econômica irá garantir a existência digna de toda a população.
Por último, ainda é importante lembrar que a Constituição Federal, em seu art. 5º, traz o chamado princípio da igualdade. A PEC, por sua vez, iguala a idade mínima de mulheres e homens no caso dos professores e trabalhadores rurais. Mulheres, em outros casos, possuem idade mínima diferenciada por conta da dupla jornada e da dificuldade de permaneceram ativas no mercado de trabalho. A diferenciação deveria permanecer em todos os casos, sob pena de violação desse princípio.
Os parlamentares brasileiros devem se ater a tais questões e não podem tomar medidas que prejudiquem a classe mais necessitada, mas, por ora, podemos dizer que falharam ao permitir que mudanças inconstitucionais seguissem em tramitação no Congresso, ao aprovarem a PEC na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), e seguirão falhando caso a proposta seja aprovada. É importante cumprir os princípios constitucionais e assegurar os direitos e garantias individuais pensando na dignidade do trabalhador e do aposentado, para o bem do País, já que os exemplos dos países que instituíram reformas semelhantes comprovam o retrocesso social e a ampliação das desigualdades.
*Erick Magalhães é especialista em Direito Previdenciário e Trabalhista e sócio do escritório Magalhães & Moreno Advogados