Descanso sagrado aos domingos

 
Fernando de Almeida Prado*
 
Deus criou o mundo e, no sétimo dia, descansou, como é relatado no livro bíblico Gênesis. A ideia e a necessidade de descanso, após uma semana de trabalho, é tão antiga que se perde na história. A tradição judaica reserva para o descanso o período do Shabbat, entre o pôr-do-sol de sexta-feira e o pôr-do-sol de sábado. Já a tradição católica, de maior prevalência no Brasil, consagrou o domingo como dia de descanso “sagrado”. Domingo é culturalmente visto como o dia de união para os amigos e à família. A milenar exigência de descanso, por consequência, produziu reflexos nas relações de trabalho.
 
Poucos anos depois da edição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a Lei Nº 605/1949 estabeleceu que as atividades econômicas em geral não podem funcionar aos domingos e que o dia de descanso semanal para os empregados seria preferencialmente aos domingos.
 
Algumas profissões muito prestigiadas à época possuem regramentos específicos sobre o trabalho aos domingos. Jornalistas, por exemplo, têm o direito ao descanso aos domingos, como regra geral. Com mais rigor, os professores são proibidos de reger aulas e dar exames aos domingos. Mais por machismo do que por sensibilidade à dupla jornada rotineiramente imposta às mulheres, a legislação trabalhista ainda previu que elas têm direito de que seu dia de descanso sempre recaia no domingo, exceto quando houver “necessidade imperiosa”, o que permitiria o descanso em domingos alternados.
 
Passados mais de 70 anos da edição da legislação original, o atual momento é de revisão do panorama legislativo para ampliar a permissão de trabalho aos domingos, em uma época em que paradoxalmente já existe grande dificuldade para os trabalhadores se desconectarem e se desligarem de seus trabalhos.
 
A Medida Provisória Nº 905/2019, de novembro do ano passado, e já integralmente revogada, instituiu o já finado “Contrato de Trabalho Verde e Amarelo” e diversas alterações na CLT. A mais importante destas foi a autorização permanente para o trabalho aos domingos e feriados para todas as categorias econômicas. O direito ao descanso, caso tal medida fosse mantida, seria somente quinzenal. O dia de descanso se tornou menos sagrado pelo pouco tempo que a legislação permaneceu em vigor.
 
Não bastasse o ataque legislativo ao descanso dos trabalhadores aos domingos, os avanços tecnológicos permitiram o trabalho remoto que, por consequência das regras do mercado, tornou-se obrigatório. Para os empregados de atividades intelectuais, não basta trabalhar quando fisicamente presente no escritório, deve haver trabalho ou, ao menos, disponibilidade de modo ininterrupto também quando fora do ambiente laboral. Celulares, e-mails e WhatsApp fazem o dia de descanso ficar cada vez menos sagrado.
 
Aproveitando-se destas novas exigências empresariais, a Lei Nº 13.467/2017, conhecida como a “Reforma Trabalhista”, trouxe uma série de mudanças prejudiciais aos trabalhadores. Uma delas, que pode ser considerada particularmente ruim para os empregados, foi o enquadramento do teletrabalho - o trabalho realizado fora do ambiente corporativo com o uso de ferramentas tecnológicas - como isento de controle de jornada. Desde novembro de 2017, a demanda por trabalho realizado à distância passou a representar um menor risco às empresas, em detrimento do descanso dos trabalhadores.
 
Este panorama tecnológico e de práticas do mercado de trabalho levou alguns a ansiar pela criação de um novo marco jurídico: o direito à desconexão, não previsto expressamente nas leis brasileiras, mas que seria decorrente dos direitos fundamentais ao lazer, ao repouso e ao controle de jornada. Da forma que está sendo construído em nossos Tribunais, o direito à desconexão impediria que as empresas demandem trabalhos aos finais de semana, férias e fora do horário de expediente. O direito à desconexão é o direito de se desvincular do trabalho, entre uma jornada e outra e, especialmente,  durante o sagrado descanso semanal.
 
O conceito do direito à desconexão, criado como reflexo do avanço tecnológico, ganhará ainda mais relevância no mundo pós-pandemia da Covid-19. Sem os limites precisos impostos pelo trabalho no espaço físico do escritório, o trabalho feito de casa, sem horários definidos para iniciar ou encerrar, e sem controle de jornada, será o “novo normal”.
 
Paradoxalmente, a falta de barreiras físicas que separavam nossas casas e trabalhos fará com que seja cada vez mais difícil se desconectar do mundo do trabalho. E será cada vez mais difícil descansar aos domingos.
 
*Fernando de Almeida Prado é advogado trabalhista, professor universitário e sócio-fundador do escritório BFAP Advogados
 


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