Justiça reconhece vínculo de entregador que trabalhava para mercearia com uso de aplicativo
O juiz Gastão Fabiano Piazza Júnior, titular da 15ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, reconheceu a relação de emprego entre um entregador e uma mercearia da capital. O trabalhador realizava serviços de entrega para a empresa, com utilização de aplicativo de tecnologia virtual. Ao examinar as provas, o magistrado constatou que as atividades eram desenvolvidas com a presença dos pressupostos da relação de emprego, previstos no artigo 3º da CLT: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.
Na ação trabalhista, o entregador afirmou que, embora sem registro formal na carteira de trabalho, sempre trabalhou como empregado da mercearia. Disse ter sido contratado por ela para atuar na entrega de produtos de uma fábrica de bebidas, a qual, no seu entendimento, seria responsável subsidiária pelo pagamento dos direitos decorrentes do contrato de emprego.
Em defesa, a mercearia admitiu a prestação de serviços do entregador, mas negou o vínculo de emprego. Amparou-se no artigo 442-B da CLT, acrescido pela reforma trabalhista, já que o contrato teve início após a entrada em vigor da Lei nº 13.467/2017, em 11/11/2017. A norma estabelece que: “A contratação de autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no artigo 3º desta Consolidação”. A empresa sustentou que o autor, ao realizar a entrega de seus produtos, o fazia de forma autônoma, sem exclusividade e continuidade.
Ainda segundo a mercearia, eventual existência de vínculo de emprego seria, em tese, “discutível apenas com o aplicativo a quem o reclamante estaria subordinado”. Isso porque, conforme afirmou, “a atividade comercial executada (…), revenda de bebidas e a atividade de motoboy/entregador realizada pelo reclamante, são exclusivamente contratadas, gerenciadas e pagas pela fábrica de bebidas e pelo aplicativo próprio da fabricante, em parceria”.
Na sentença, o magistrado ressaltou que caberia à empresa provar suas alegações, especialmente quanto à autonomia na prestação de serviços, ou à ausência da subordinação jurídica, que constitui o traço distintivo principal entre o trabalhador empregado e o profissional autônomo. Mas a empresa não provou suas alegações, como deveria, pelas regras do ônus da prova.
No entendimento do juiz, não ficou demonstrado, de forma inequívoca, a natureza autônoma do trabalho desenvolvido. Pelo contrário, a prova testemunhal revelou a sujeição do entregador ao poder de comando da mercearia. Segundo relatos, os entregadores deveriam prestar serviço nos dias e horários estabelecidos pelo gerente/administrador da empresa e, caso precisassem faltar ao serviço ou sair mais cedo, ele deveria ser comunicado.
As declarações das testemunhas também foram esclarecedoras quanto à forma de execução das atividades e a relação entre o entregador, a mercearia e a fabricante de bebidas. Pelos depoimentos, verificou-se que não havia ligação direta dos entregadores com a fábrica de bebidas, mas sim com a mercearia. Após o APP da fabricante de bebidas direcionar o cliente para a mercearia, esta repassava o pedido ao entregador, observando-se a ordem de sequência dos motoqueiros contida em um quadro existente na empresa. Recebido o pedido, o trabalhador fazia a entrega e devolvia a comanda para a mercearia, a fim de que, no final do dia, fosse contabilizada a produção. A remuneração era por tarefa (número de entregas realizadas) e o pagamento era quinzenal. De acordo com os depoimentos, as entregas não eram apenas de produtos da fabricante de bebidas, mas também de outras empresas, realizadas por meio do APP da mercearia, que é diferente do APP da fábrica de bebidas. Além disso, a mercearia também recebia pedidos feitos por telefone.
Uma testemunha contou que o entregador poderia “tomar balão” se chegasse atrasado ou faltasse ao serviço, o que, na visão do magistrado, demonstra que, diversamente do que tentou mostrar a mercearia, não poderia o trabalhador, por sua livre opção e sem aviso prévio, deixar de comparecer ao trabalho ou mesmo se atrasar. Outra testemunha declarou que a mercearia exigia dos entregadores que eles fossem educados com os clientes da empresa e que era o gerente quem contratava os motoqueiros, geralmente por indicação daqueles que já trabalhavam na loja.
Na constatação do juiz, todas essas circunstâncias apuradas afastam, de forma contundente, a tese da mercearia de que a atividade comercial de revenda de bebidas e a atividade de motoboy/entregador realizada pelo autor “são exclusivamente contratadas, gerenciadas e pagas pela fabricante de bebidas e pelo aplicativo desta, em parceria”. Para o juiz, os fatos revelados contrariam ainda a alegação de que o autor “nunca realizou entregas diretamente para a mercearia, sempre através do aplicativo” e de que “todas que foram realizadas, ocorreram como e quando quis o motoboy”.
Na sentença, o juiz ressaltou que o trabalho do entregador também não pode ser considerado como eventual. “É que o pressuposto em apreço traz a ideia de um acontecimento episódico, casual, incerto, fortuito (Teoria do Evento), inteiramente desvinculado do intuito financeiro primordial da tomadora dos serviços (Teoria dos Fins do Empreendimento)”, explicou, entendendo não ser esse o caso do processo. Além de as atividades executadas terem se estendido por mais de um ano (de 6/6/2019 a 29/12/2020), inseriam-se, de forma contundente, no objeto social da mercearia, sendo imprescindíveis à consecução de seus fins, quais sejam: atividades de “bar, lanchonete, e mercearia em geral”, nos termos da cláusula 2ª do contrato social.
Relação de emprego
O julgador ponderou que, embora a exclusividade não seja requisito do contrato de emprego, ficou demonstrado que o motoboy não ofertava seus serviços a outros tomadores. Uma testemunha ouvida foi, nas palavras do juiz, enfática ao afirmar que os entregadores da mercearia não podiam trabalhar para outras empresas ou atender outros aplicativos. Atendiam apenas o APP da fabricante de bebidas e o da própria empregadora, a mercearia. Outra testemunha ouvida confirmou que o autor trabalhava exclusivamente para a mercearia.
De acordo com a sentença, não se aplica ao caso o disposto no artigo 442-B da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/17, uma vez que havia forte ingerência por parte da empresa na prestação de serviços, assim como estiveram presentes todos os demais pressupostos de que trata o artigo 3º da CLT. “Assim, caracterizada a fraude, afasta-se a incidência do caput do referido preceptivo, despontando a relação de emprego, com todos os consectários legais daí advindos, por força do disposto nos artigos 9º e 444 da CLT”, concluiu o magistrado.
Na avaliação do juiz, ao contrário do sustentado na defesa, a situação vivenciada pelo autor é totalmente diversa daquela em que entregadores, por meio de cadastro realizado em plataformas digitais, prestam seus serviços de forma autônoma, efetuando entregas de acordo com a sua conveniência e disponibilidade, sem exigência de jornada, podendo interromper suas atividades em qualquer horário, sem a imposição de penalidade ou a necessidade de autorização dos representantes das plataformas. “No caso vertente, em sentido diametralmente oposto ao mencionado, foi robustamente demonstrado que não abdicou a requerida de seu poder diretivo, exigindo o cumprimento de horários pré-fixados e imiscuindo-se no modo de ser da prestação de serviços do colaborador”, frisou.
Ainda nas palavras do magistrado: “Em síntese: não é difícil concluir que buscou a ex-empregadora minimizar custos e maximizar lucros, transferindo para seu colaborador todos os riscos da atividade econômica. No entanto, sempre manteve a direção pessoal da prestação de serviços. Tal atitude certamente não pode contar com o beneplácito desta Justiça.”
Vínculo
A decisão reconheceu a relação de emprego entre o entregador e a mercearia, no período de 6/6/2019 a 29/12/2020, com remuneração média mensal de R$ 3.360,00, conforme afirmado pelo motoboy e corroborado pela prova documental e testemunhal. A importância será acrescida dos repousos semanais remunerados.
Em razão da ausência de prova da alegação de que o motoboy teria pedido demissão e tendo em vista o princípio da continuidade da relação de emprego, considerou-se a presunção de que a rescisão contratual decorreu de dispensa sem justa causa.
Além do registro na carteira de trabalho, a mercearia foi condenada a pagar as parcelas contratuais devidas, tais como saldo salarial, aviso-prévio, férias acrescidas do terço constitucional e 13ºs salários. A empresa deverá ainda entregar as guias do seguro-desemprego e do FGTS, garantida a integralidade dos depósitos e multa de 40%, caso contrário, deverá pagar as indenizações substitutivas. Em razão do atraso no acerto rescisório, aplicou-se a multa prevista no artigo 477, parágrafo 8º, da CLT.
Por fim, o autor ainda teve reconhecidos os direitos aos adicionais de horas extras e reflexos, pagamento em dobro pelos feriados trabalhados e indenização pelo aluguel da motocicleta que utilizava no serviço, no valor de R$ 100,00 por mês.
A jurisprudência é firme no que tange à responsabilidade subsidiária do tomador de serviços quanto ao descumprimento, por parte do empregador, das obrigações trabalhistas (TST, Súmula 331, IV).
No caso, entretanto, a fábrica negou sua condição de tomadora dos serviços do motoboy. Afirmou que não descentralizou prestação de serviços, não gerenciou ou mesmo fiscalizou os serviços dos estabelecimentos comerciais que possuem contrato com a plataforma do APP, apenas disponibilizou uma ferramenta, um “plus” tecnológico às lojas (no caso, a mercearia) para realizar suas vendas, as quais são inteiramente responsáveis pela entrega ao cliente/consumidor.
Ainda segundo a fábrica de bebidas, os entregadores cadastrados podem utilizar mais de um aplicativo ao mesmo tempo e, inclusive, recusar entregas, o que demonstra que ela em nada interfere na prestação de serviços. Acrescentou que muitos desses profissionais prestam serviços concomitantemente a empresas que fornecem plataformas digitais, inexistindo prova de que o autor atuava apenas na entrega dos produtos da empresa. Alegou ainda que a mercearia demandada poderia se valer de outras empresas ou outros profissionais para as entregas, caso fosse de seu interesse.
Diante da negativa, o magistrado considerou que cabia ao autor, exclusivamente, demonstrar o contrário, por se tratar de fato constitutivo de seu direito (artigos 818, I, da CLT e 373, I, do CPC).
Mas, na avaliação do julgador, ele não se desvencilhou de seu encargo processual: “Pelo contrário. Restou comprovado que o autor entregava produtos não só da fabricante de bebidas, como também de outras empresas, através do APP da 1ª ré. Além disso, atendia pedidos feitos à mercearia por telefone. Diante de tal quadro, não se vislumbra a exclusividade necessária da prestação de serviços à fábrica de bebidas em um determinado período que autorize o deferimento da responsabilidade subsidiária vindicada”, destacou na sentença.
Por entender que inexistiram demonstrações de qual seria a proporção em que a fábrica teria se beneficiado do trabalho desenvolvido pelo motoboy, o magistrado julgou improcedente o pedido de condenação subsidiária da empresa pelos créditos trabalhistas deferidos ao entregador. Com informações do TRT-MG.