Estimativa aponta mais de 1,4 milhão de vítimas de escravidão moderna em países de língua portuguesa
Por 388 anos, a economia do Brasil foi ligada ao trabalho escravo. Trazidas da África, milhões de pessoas desembarcaram em solo brasileiro para serem submetidas ao trabalho forçado. Em 13 de maio de 1888, foi assinada a Lei Áurea, que aboliu formalmente a escravidão. Em 2024, Portugal, pela primeira vez, reconheceu a culpa pela escravização de povos africanos no período colonial.
Apesar disso, esse longo e triste episódio de uma história compartilhada por diversos países ainda não teve fim – seja pelas consequências sociais e culturais que reverberam na atualidade, seja pela persistência da submissão de seres humanos ao trabalho forçado – no Brasil e no mundo.
Esta reportagem aborda como o tema vem sendo tratado em países de língua portuguesa. O conteúdo integra a série especial “Trabalho Decente e Justiça em Países de Língua Portuguesa”, produzida a partir dos debates entre representantes dos sistemas de Justiça de sete nações durante a “1ª Oficina Internacional: Diálogo e Cooperação Sul-Sul de Países da CPLP sobre Justiça do Trabalho”. O evento ocorreu em março deste ano, no Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília, e contou com representantes de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
Estima-se que 49,6 milhões de pessoas no planeta estejam submetidas à escravidão moderna – uma a cada 150. A prática é definida como situações de exploração às quais a pessoa não consegue se negar ou das quais não consegue sair em razão de ameaças, violência e coerção. Os números são do Global Slavery Index de 2023, elaborado pela Walk Free, grupo internacional de direitos humanos focado na erradicação do problema.
O Brasil ocupa o 11º lugar no ranking mundial dos países com maior número absoluto de vítimas, com um total estimado de 1,05 milhão de pessoas. Quando considerados os países de língua portuguesa analisados pela Walk Free, o Brasil é o terceiro com a maior incidência de casos (número de vítimas a cada 1.000 pessoas). Juntos, esses países somam mais de 1,4 milhão de vítimas.
Dados do Relatório Lucros e pobreza: aspectos econômicos do trabalho forçado, divulgado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em março de 2024, revelam que o trabalho escravo tem gerado lucros de US$ 236 milhões por ano na economia privada.
O trabalho análogo à escravidão é uma manifestação extrema da desigualdade e da injustiça social que perpetua e amplia as disparidades socioeconômicas ao explorar as pessoas mais vulneráveis e marginalizadas, independentemente de raça, idade, cor ou gênero. Ele as priva de sua dignidade e autonomia, negando-lhes o direito básico de escolher onde e como trabalhar.
Muitos se sujeitam a essa situação pela falta de oportunidades e se calam por medo de, ao denunciarem, colocarem sua integridade física e emocional em risco.
ANGOLA E O DESAFIO DA DENÚNCIA
Pedro Joaquim Ngola, procurador-geral adjunto de Angola, reconhece que um dos grandes desafios no país é fazer com que os trabalhadores denunciem. “Eles são silenciados pelo medo de uma retaliação ou pela perda do emprego”, explica. “Outro desafio é o reforço nos mecanismos de fiscalização pelas entidades públicas”.
Como instrumento eficaz para combater e dar visibilidade ao problema, Pedro Ngola lembra o resgate de uma jovem, em Luanda, fruto de denúncia nas redes sociais. Confira:
Aimadú Sauane, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Guiné-Bissau, relata que, em seu país, a Lei 12/2011 visa prevenir e combater o tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças. A norma impõe sanções penais de três a 15 anos de prisão para quem “recrutar, fornecer, transportar, acolher uma pessoa para fins de prostituição, trabalho forçado, escravidão, servidão involuntária ou por dívida”. Segundo ele, essa evolução legal está pautada na dignificação do homem e na consequente luta contra o trabalho forçado. “Apesar dos esforços empreendidos, este ainda é um grande problema mundial e a solução também tem que ser global”, assinala.
HOMENS DE BAIXA ESCOLARIDADE SÃO PRINCIPAIS VÍTIMAS NO BRASIL
Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas mostram que, entre 1995 e 2023, 631.035 pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil. Somente em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 3.190 trabalhadores nessa situação, o maior número dos últimos 14 anos.
Historicamente, homens jovens, com baixa escolaridade ou analfabetos são as principais vítimas, conforme o Balanço de 2020 da Atuação da Inspeção do Trabalho no Brasil, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Enfrentar a invisibilidade de mulheres sujeitas ao trabalho análogo à escravidão em ambientes domésticos é um dos desafios no Brasil. Segundo Luciana Conforti, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), é preciso falar sobre o tema cada vez mais, pois as políticas públicas ainda não são estruturadas com base em questões de gênero e raça. Isso, a seu ver, torna ainda mais obscuros os contornos da escravização feminina, que, reforçada por uma questão cultural, muitas vezes começa na infância.
Entre 2017 e 2022, 54 pessoas foram resgatadas dessa situação, de acordo com o MTE. Em abril, a pasta atualizou o cadastro de empregadores que submetem trabalhadores a condições análogas à escravidão, conhecido como “Lista Suja”. Dos 248 novos registros, 43 se referem ao ambiente doméstico.
O artigo 149 do Código Penal define os elementos que caracterizam a redução de um ser humano à condição análoga à de escravo: a submissão a trabalhos forçados, a jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho e restrição, por qualquer meio, de sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou seu preposto. A pena para o crime é de reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.
A Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), proposta em 1930 e ratificada pelo Brasil, define como forçado o trabalho em que a pessoa não pode decidir livremente se aceita a atividade. O país, contudo, ainda não ratificou o Protocolo de 2014 à Convenção 29, que proíbe todas as formas de escravidão e atua em três níveis: prevenção, proteção e reabilitação das vítimas.
De acordo com o juiz do trabalho Otávio Bruno Ferreira, do TRT da 8ª Região (AP/PA), apesar de o país contar com uma legislação avançada, esse ainda é um problema de grande violação dos direitos humanos. Por isso, no ano passado, a Justiça do Trabalho lançou o Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante, que tem por objetivo desenvolver ações permanentes para a erradicação desse cenário.
O juiz explica que o programa, entre outras ações, deverá elaborar um protocolo que oriente a atuação da magistratura do trabalho em casos que envolvam trabalho análogo ao escravo. “Isso contribuirá para um julgamento justo, com uma escuta qualificada e acolhedora”, afirma. “É preciso levar em consideração que não é um processo que apenas envolve o pagamento de verbas rescisórias, mas também a grave violação dos direitos humanos”.
Desde junho de 2020, a primeira instância da Justiça do Trabalho julgou mais de 25,5 mil processos sobre o tema, segundo o Monitor de Trabalho Decente da Justiça do Trabalho. Com informações do TST