As bets, a assistência social e as finalidades constitucionais

 
Marco Aurélio Serau Junior*
 
Nas últimas semanas foram publicadas diversas notícias nas redes sociais a respeito das Bets, as famigeradas casas de apostas eletrônicas.
 
As notícias giraram em torno tanto de rumorosos processos penais envolvendo lavagem de capitais como quanto à utilização (em montantes expressivos) de recursos provenientes de programas federais de transferência de renda para apostas nas referidas loterias eletrônicas. O Banco Central apontou a utilização de 3 bilhões de reais (cerca de 21% dos recursos totais do programa Bolsa Família) para apostas nas Bets, somente no mês de agosto de 2024 .
 
Em virtude de ambos os casos, fica evidente a necessidade de uma adequada regulamentação desse segmento, a qual deve enfrentar esses e outros inúmeros pontos que têm sido debatidos pela sociedade, a exemplo da publicidade, inclusive a publicidade direcionada ao público infantil.
 
Neste artigo iremos nos limitar a discutir a relação entre os beneficiários da Assistência Social e o uso (até agora indiscriminado) dos recursos de programas federais de transferência de renda para aplicação nas apostas eletrônicas.
 
Há em curso no Poder Legislativo uma série de projetos de lei  visando cumprir essa função regulatória, e, no que diz respeito à Assistência Social, diverge-se sobre o caminho a tomar: a) cancelamento do benefício de Bolsa Família para os beneficiários que venham a aplicar recursos nas Bets ou; b) proibição destes beneficiários de jogar nas referidas loterias eletrônicas. Ao que se noticia, ainda não há consenso político a respeito de qual perspectiva regulatória será adotada.
 
A Assistência Social é um segmento da Seguridade Social muito conectado à consagração da dignidade da pessoa humana, especialmente à população mais vulnerável, que sequer alcança a Previdência Social ou o mercado formal de trabalho. 
 
Nesse rumo, é pautada pela perspectiva de autodeterminação pessoal, isto é, esta política pública é estruturada a partir da ideia de que os beneficiários da Assistência Social (inclusive do Bolsa Família) terão liberdade para a destinação dos recursos recebidos via programas de transferência de renda, não somente para satisfação de necessidades alimentares, mas também de necessidades ou interesses diversos: aquisição de vestuário, aparelhos celulares, planos de telefonia, etc.
 
Apesar dessa premissa verdadeira de autodeterminação que é atribuída aos beneficiários dos programas assistenciais, deve-se questionar se há algum tipo de limite para isso. Deve ser lembrado que no ordenamento jurídico a maior parte dos direitos são relativizados face a outros direitos, próprios ou de outros titulares, inclusive de toda sociedade.
 
Neste sentido, pode ser questionado se há um “direito subjetivo ao jogo”, o que nos parece configurar um completo desvirtuamento da política assistencial (onde se insere a Bolsa Família), cujos objetivos podem ser compreendidos pela leitura dos artigos 6º e 203, da Constituição Federal:
 
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária
 
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
VI - a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza.
 
Para ampliar nosso raciocínio sobre esse tema, é válido recapitular a discussão acalorada em torno da Lei 14.431/2022, onde foram lançadas muitas posições contrárias à possibilidade dos beneficiários do Bolsa Família celebrarem contratos de empréstimo consignado incidentes sobre o valor mensal percebido dentro desta política pública (justamente sob o argumento de que se trataria de verba destinada à subsistência e dotada de caráter alimentar).
 
Por tudo isto, vislumbra-se uma inequívoca necessidade de readequação da política assistencial, especialmente no que diz respeito à participação dos beneficiários nos certames promovidos pelas casas de apostas eletrônicas, sendo que a perspectiva da proibição de jogar nas Bets parece ser a melhor opção (ao invés do puro e simples cancelamento do benefício).
 
*Marco Aurélio Serau Junior é Doutor e Mestre em Direitos Humanos. Diretor Científico-Adjunto do IBDP. Professor da UFPR e membro do Conselho Editorial de diversas revistas jurídicas. Autor.
 
 


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