Marco Aurélio Serau Junior: Desaposentação: análise preliminar do julgamento no STF

No último dia 09 de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) retomou o julgamento do Recurso Extraordinário 661.256, com relatoria do Ministro Luis Roberto Barroso, o qual havia iniciado no dia anterior com a leitura do relatório. Ontem fizeram suas sustentações orais o Advogado-Geral da União e os advogados representantes dos amicus curiae que atuam no feito, em especial o IBDP, na voz da Dra. Giselle Lemos Kravychychyn.

O tema é de extrema relevância para a comunidade jurídica, em especial previdenciária, brasileira. O julgamento foi suspenso diante da ausência de três ministros naquela sessão da Corte Suprema, pois se entendeu que deveria ser apreciada a matéria pelo quórum completo, mas já se pode tecer algumas considerações a respeito do brilhante voto proferido pelo Relator, Ministro Roberto Barroso.

Questões preliminares

O Relator inicialmente destaca a importância da matéria e diversidade de decisões a respeito, tomando por exemplo o próprio processo de que é Relator, onde a sentença julgou improcedente o pedido de desaposentação, o TRF4 possibilitou-a, mas condicionando-a à devolução dos valores relativos à primeira aposentadoria, decisão parcialmente mantida pelo STJ, mas agora sem que seja necessária a devolução daqueles valores.

Ainda em âmbito preliminar, e a questão é relevante, afastou-se a arguição de que haveria declaração incidental de inconstitucionalidade do art. 18, § 2º, da Lei de Benefícios, pelo STJ, conforme levantado pelo INSS em seu recurso extraordinário. De acordo com o Relator, o STJ não reconheceu ou declarou inconstitucionalidade de artigo, apenas verificou que não havia norma aplicável à desaposentação, proibindo-a ou não, de sorte a afastar a questão de eventual declaração incidental de inconstitucionalidade, o que poderia causar impacto processual sobre a matéria levada a julgamento.

Mérito

O Relator inicia seu voto meritório indicando que o sistema previdenciário constitucional estrutura-se a partir do princípio da solidariedade e do caráter contributivo. Porém, apresenta o argumento de que não há comutatividade estrita entre o recolhimento de contribuições e o recebimento de benefícios, pois não se adota regime de capitalização, mas de repartição.

Nesse ponto o Relator exemplificou que nem todo aquele que recolhe contribuição previdenciária irá receber benefício, indicando a situação daquele que vem a falecer, mesmo após recolher muitos anos de contribuição, mas sem preencher os requisitos para a aposentadoria e sem deixar herdeiros.

Com essa premissa, o Relator indica os parâmetros a partir dos quais o legislador poderá tratar de matéria previdenciária: a) respeitar o princípio da isonomia e; b) impossibilidade de instituição de contribuição previdenciária sem a devida contrapartida em termos de benefício previdenciário.

Fixados esses parâmetros, o Min. Barroso se aproxima da questão da desaposentação: quando o aposentado volta a trabalhar, entra em igualdade de regime jurídico contributivo com os demais trabalhadores da iniciativa privada, voltando a recolher contribuições previdenciárias; mas não há igualdade quanto aos benefícios que perceberá (com a extinção do pecúlio em 1995), pois a ele só serão devidos os benefícios do salário-maternidade e reabilitação profissional – tidos pelo Relator como inexistentes ou pouco aplicáveis à realidade do aposentado que volta a trabalhar.

Concluiu o relator que o art. 18, § 2º, da Lei de Benefícios, nesses termos, viola o sistema constitucional contributivo, pois impõe dever de recolhimento de contribuições sem a fixação dos correlatos benefícios previdenciários. De outra parte, o Relator entende que não há vedação expressa à desaposentação em nenhuma norma jurídica; inclusive, sugere que se houvesse haveria eventual vício de inconstitucionalidade. Por todos estes fundamentos, declara a possibilidade de ocorrer a desaposentação.

Na sequência, o Exmo. Sr. Ministro Relator passa a discutir a questão da restituição dos proventos de aposentadoria já recebidos.

Nesse campo, aventou a jurisprudência do STJ, que compreende pela desnecessidade total de restituição dos proventos da primeira aposentadoria, diante da sua concessão válida, recebimento de boa-fé e irrepetibilidade da verba alimentar.  Mas ponderou, em sentido contrário a impossibilidade de haver vantagem (ofensa à isonomia) entre aqueles que já receberam benefício previdenciário anterior e aqueles que se aposentam pela primeira vez. Ao mesmo tempo, também traz para o argumento relativo à isonomia o fato de que existiram contribuições previdenciárias após a primeira aposentação.

Pensando nas soluções possíveis para essa questão, descarta a solução mais extrema, em suas próprias palavras, que seria a devolução integral do benefício recebido como primeira aposentadoria, pois isso corresponderia a “dar com uma mão e retirar com a outra”. O Min. Barroso também descarta a solução de parcelar ou escalonar referida devolução conforme a expectativa de vida do segurado, pois se recairia na mesma situação draconiana de permitir a desaposentação e anulá-la pela via econômica. Descarta a solução de retornar o benefício do pecúlio, com a devolução das contribuições previdenciárias recolhidas após a primeira aposentadoria (ou de metade delas, como cogitou o próprio relator), visto que o sistema previdenciário é, atualmente, contributivo. Por fim, também abre mão de que o STF meramente faça uma exortação ao legislador para que construa uma resposta à situação em tela.

Diante disso, o Ministro Barroso corajosamente optou por construir uma solução para o tema da desaposentação e a restituição dos proventos de primeira aposentadoria a partir dos princípios constitucionais do sistema. É o que veremos a seguir.

Metodologia de cálculo

O Relator propõe uma forma de cálculo do novo benefício utilizando os elementos que já constam do art. 29, da Lei de Benefícios, inseridos na estrutura do fator previdenciário: tempo de contribuição, idade, expectativa de vida, média aritmética das contribuições atualizadas. Ressaltou, e entendemos que isso é muito relevante, a necessidade de computar, nesse cálculo, todas as contribuições vertidas ao regime previdenciário, antes e depois da primeira aposentadoria.

Como uma solução intermediária entende que na montagem do fator previdenciário para o novo benefício seria o caso de considerar a idade e a expectativa de vida verificadas no momento da primeira aposentadoria, o que geraria certo equilíbrio atuarial e isonomia entre aqueles que não buscaram a desaposentação.

A proposta que levou ao Plenário do STF, segundo as próprias palavras do Relator, teriam a intenção de conjugar justiça social e justiça atuarial/intergeracional.

Modulação de efeitos

O Exmo. Sr. Ministro Relator propôs em seu voto uma espécie de modulação dos efeitos da decisão aqui analisada, que passaria a valer somente após 180 dias a contar de seu trânsito em julgado.

A medida, conforme o próprio Relator, teria o condão de: a) propiciar o devido arranjo administrativo para a efetivação da desaposentação nas próprias agências do INSS, especialmente para aferição operacional e relativa ao tempo de custeio; b) prestigiar eventual atuação legislativa que viesse a suprir essa lacuna normativa durante esse semestre que se propõe como lapso para implantação efetiva desse direito previdenciário.

Atuação do legislador

É importante retomar que o Relator do RE 661.256 frisou que a questão levada ao Plenário deveria, em primeiro lugar, ser resolvida mediante debate público na esfera adequada, qual seja o Poder Legislativo – ressaltando as limitações de não se poder estabelecer contribuição previdenciária destituída de recebimento de contrapartida previdenciária. Destacou também que a mora legislativa é que produz situações anômalas como a desaposentação e o fator previdenciário.

Nesse a parte, porém, indicou que seria conveniente a adoção de idade mínima para a aposentadoria no RGPS, tal como ocorre na maior parte do mundo. Outrossim, ressalvou a possibilidade de utilizar metodologia mais flexível que conjugue a idade mínima com o tempo de contribuição, deixando de punir aqueles que começam a trabalhar muito cedo, o que ficou conhecido como fórmula 85/95.

Por todos estes fundamentos o Relator deu parcial provimento ao recurso extraordinário do INSS, preservando a possibilidade de desaposentação, mas alterando a forma de cálculo do novo benefício previdenciário, conforme metodologia que expusemos acima. O julgamento, como dissemos, foi suspenso para que seja retomado quando composto o STF em seu quórum completo.

Análise preliminar

O voto do Relator, Ministro Barroso, é louvável em vários aspectos:

a) pelo simples fato de reconhecer a validade da desaposentação, sem margem a dúvidas;

b) pelo reconhecimento secundário do aspecto de que não há possibilidade de instituição de contribuição previdenciária desvinculada de qualquer benefício previdenciário ao segurado;

c) por descartar a restituição dos valores já recebidos como primeira aposentadoria, ainda que sugira metodologia de cálculo diversa do que aquela que as pessoas que ajuizaram ações buscavam, mas causadora de aumento efetivo de proventos;

d) ao exortar a Administração Pública e o legislador a que ocupem seu devido espaço, legislando e regulamentando a questão, sem prejuízo ao segurado.

O julgamento merece análise mais aprofundada, inclusive porque se encontra suspenso sem que tenham sido colhidos os votos dos demais Ministros da Excelsa Corte, mas a primeira perspectiva para o futuro da desaposentação é bastante satisfatória.

A remessa da desaposentação para as vias administrativas deve ser vista de modo positivo, pois, embora em primeiro momento possa parecer como redução do campo de atuação para os advogados, sempre haverá a necessidade da devida Consultoria, além dos óbvios espaços da advocacia perante o processo administrativo e para correção de erros cometidos nessa via, além da própria vantagem em termos de celeridade na obtenção desse benefício previdenciário.

A metodologia de cálculo proposta pelo Ministro Barroso é bastante razoável e certamente produzirá aumento dos proventos dos segurados que buscarem a desaposentação, mesmo nesse formato diverso do que postulado normalmente pelos segurados. Utilizando a idade e expectativa de vida presentes no momento da primeira aposentadoria, mas a contribuição total vertida pelos segurados, o resultado será positivo, certamente, mas não tanto quanto se fosse recalculado o benefício tal como se fosse uma aposentadoria inédita, utilizando-se o total das contribuições, mas também a idade e expectativa de vida atuais.

Embora não corresponda ao pedido formulado atualmente em juízo, penso que se trata de solução intermediária e justa, inclusive com o condão de impedir eventual devolução dos valores relativos à primeira aposentadoria.

Em relação à restituição de proventos, o Relator indica que isso não poderia ser desconsiderado, sob ofensa ao princípio da isonomia. O argumento é bastante sério e talvez não possa ser derrubado. É provável que a solução inovadora proposta para o cálculo do novo benefício seja um mecanismo intermediário de compensar esse outro ponto relativo à devolução dos valores da primeira aposentadoria.

Deve ser alvo de crítica o breve obter dictum aduzido pelo Ministro Barroso em sua fala, pois, além de ser matéria estranha ao julgamento da desaposentação, entendemos que a sugestão, para o legislador, da adoção de idade mínima para a concessão de aposentadorias é instituto que poderá trazer consequências severas ao segurado, pois o mercado de trabalho no Brasil emprega pessoas jovens e as desemprega a partir de certa idade, dificultando a obtenção de tempo prolongadíssimo de recolhimento de contribuições.

Por fim, não custa relembrar que o julgamento em tela é proferido no sistema da repercussão geral, o que propicia efeitos vinculantes nas demais instâncias jurisdicionais e mesmo na esfera administrativa.

Aguardemos a conclusão o julgamento.

* Marco Aurélio Serau Junior é mestre e doutorando em Direitos Humanos (Universidade de São Paulo), especialista em Direito Constitucional (Escola Superior de Direito Constitucional), especialista em Direitos Humanos (Universidade de São Paulo), professor universitário e de cursos de pós-graduação e autor de diversos artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior, além de diversas obras, como Curso de Processo Judicial Previdenciário e Desaposentação – novas perspectivas teóricas e práticas - [email protected]
 



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