MP 871/19: Ilegalidades do Procedimento de Revisão de Benefícios Previdenciários
Marco Aurélio Serau Junior*
A Medida Provisória 871, de 18.01.2019, foi editada com o propósito declarado de combater fraudes em benefícios previdenciários. São necessárias várias observações a respeito do procedimento trazido pela referida MP, visto que várias etapas procedimentais são de duvidosa constitucionalidade.
Neste artigo nos deteremos sobre a forma de intimação dos aposentados, o prazo de resposta e a denominada suspensão cautelar do benefício.
A MP 871/19 alterou a redação do art. 69 da Lei 8.212/91, lei que trata principalmente do custeio da Seguridade Social, mas também prevê o Programa Especial de Revisão de Benefícios com indícios de irregularidade. O artigo 69 ficou com a seguinte redação – no que concerne aos temas que tratarei aqui:
“Art. 69. O Instituto Nacional do Seguro Social – INSS manterá programa permanente de revisão da concessão e da manutenção dos benefícios por ele administrados, a fim de apurar irregularidades ou erros materiais.
1º Na hipótese de haver indícios de irregularidade ou erros materiais na concessão, na manutenção ou na revisão do benefício, o INSS notificará o beneficiário, o seu representante legal ou o seu procurador para, no prazo de dez dias, apresentar defesa, provas ou documentos dos quais dispuser.
2º A notificação a que se refere o § 1º será feita:
I – preferencialmente por rede bancária ou notificação por meio eletrônico, conforme previsto em regulamento; ou
(…)
3º A defesa poderá ser apresentada por canais de atendimento eletrônico definidos pelo INSS.
4º O benefício será suspenso na hipótese de não apresentação da defesa no prazo estabelecido no § 1º.
5º O benefício será suspenso na hipótese de a defesa a que se refere o § 1º ser considerada insuficiente ou improcedente pelo INSS, que deverá notificar o beneficiário quanto à suspensão do benefício e lhe conceder prazo de trinta dias para interposição de recurso.
(….)
9º Se não for possível realizar a notificação de que trata o § 2º, o INSS poderá suspender cautelarmente o pagamento de benefícios nas hipóteses de suspeita de fraude ou irregularidade constatadas por meio de prova pré-constituída.
Esses dispositivos mencionados violam o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal:
“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”
Em meu livro Curso de Processo Judicial Previdenciário dedico 2 capítulos à compreensão do princípio do devido processo legal, sua base constitucional e processual e, sobretudo, seus reflexos nas ações previdenciárias.
Vale destacar, desde já, que o princípio do devido processo legal possui 2 aspectos: a) um aspecto formal, que se resume no respeito efetivo aos procedimentos expressamente previstos em lei e, b) um aspecto substancial ou material, que diz respeito não apenas à previsão expressa em lei, mas que a lei expressa seja dotada de razoabilidade e proporcionalidade.
Esse aspecto de razoabilidade e proporcionalidade é muito importante nas ações previdenciárias, onde os segurados são hipossuficientes não só em termos de recursos financeiros, mas sobretudo quanto ao conhecimento de seus direitos e às provas e meios para exercê-los.
Com esta premissa analisaremos os dispositivos legais mencionados acima.
A forma de intimação dos aposentados para apresentarem sua defesa neste novo Pente-Fino, preferencialmente pela via eletrônica ou pela rede bancária (art. 69, 2º, I, da Lei 8.212/91), é inadequada, pois esse segmento de pessoas possui, em geral, dificuldades de compreensão sobre os sistemas informatizados e as complexas regras de Direito Previdenciário.
O prazo de 10 dias para apresentação da defesa e documentação (art. 69, 1º, da Lei 8.212/91) é exíguo, tendo em vista os fatores que descrevi acima, ao que se somam as dificuldades naturais para procurar, em tão breve tempo, o advogado responsável pela aposentadoria ou pelo processo judicial onde foi implementado o benefício.
Outro fator que é inadequado para lidar com os aposentados é a apresentação da defesa pelos canais de atendimento eletrônico, tendo em vista, como já mencionei há pouco, de pessoas com pequeno grau de instrução e com dificuldades de manuseio desse tipo de tecnologia (art. 69, 3º, da Lei 8.212/91).
Estes 3 dispositivos que tratei acima ofendem o princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988) no seu aspecto material/substancial, pois estabelecem regras de defesa aos aposentados que destoam da razoabilidade e da proporcionalidade.
Por fim, é muito relevante mencionar a violação frontal ao devido processo legal, em seu aspecto formal, trazida pelo art. 69, 9º, da Lei 8.212/91, que permite ao INSS suspender cautelarmente os benefícios com suspeita de irregularidade quando não for possível a notificação dos aposentados para apresentação de defesa.
Essa ideia de impossibilidade de “realizar a notificação” é extremamente vaga e despida de critérios. Mesmo que exista uma regulamentação infralegal que indiquei em quais hipóteses se compreende seja impossível a notificação se teria ainda duvidosa constitucionalidade, pois o artigo 5º, inciso LIV, do Texto Constitucional, é claro ao mencionar que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
É fundamental, portanto, aprimorar os estudos em relação ao princípio constitucional do devido processo legal, bem como seus desdobramentos constitucionais e legais, e utilizá-los na interpretação e afastamento daquilo que é inconstitucional na MP 871/19.
*Marco Aurélio Serau Junior é Doutor e Mestre em Direitos Humanos. Diretor Científico-Adjunto do IBDP. Professor da UFPR e membro do Conselho Editorial de diversas revistas jurídicas. Autor.
Confira o link do artigo original: http://genjuridico.com.br/2019/01/28/mp-871-19-ilegalidades-do-procedimento-de-revisao-de-beneficios-previdenciarios/?fbclid=IwAR00w7akyQDGa0htNnR6OcsCCCy376SCYtiWqMpwCgNynZEeCxwEKb3Vm0k