O critério da miserabilidade e a miserabilidade do critério - benefício assistencial na PEC 6-19
Marco Aurélio Serau Junior* e José Ricardo Caetano Costa**
A PEC n. 6/19 rompe drasticamente com o conceito de Assistência Social trazida no bojo da Constituição Cidadã de 1988. Nesta, encontramos um conceito integrado de Assistência como parte da Seguridade Social, devendo ser alcançada a todo cidadão e cidadã que dela necessitar. Não é demais frisar que a Assistência social torna-se fundamental, na arqueologia da CF/88, para que seus princípios máximos de redução das desigualdades regionais e de enfrentamento à pobreza se concretizassem. Por isso, foi guindada à direito fundamental social em nossa Carta Maior.
O único benefício de prestação continuada da LOAS (promulgada em 1993 pela Lei n. 8742), começou a vigir no começo de 1997, no valor de um salário mínimo, com um critério de renda bastante restritivo: renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo legal.
Há de se frisar que, além do critério da renda referida, passou a ser alcançado para os idosos com 70 anos ou mais, ou para as pessoas incapazes para o trabalho e também para os atos da vida civil.
Em ambos os requisitos para obtenção do BPC da LOAS houve, no decorrer destes trinta anos de vigência da CF/88, notório avanço: a idade passou de 70 para 67, até chegar aos atuais 65 anos de idade. O restritivo critério de deficiência, como incapacidade laboral e também para os atos civis, ganhou nova dimensão a partir da Convenção de Nova Iorque, de 2007, recepcionada com status de Emenda Constitucional no ano seguinte. Esta acepção mais humana e abrangente da deficiência, ganha assento com a Lei Complementar n. 142/13, que institui a Aposentadoria Especiais do Deficiente, bem como pelo Estatuto do Deficiente (instituído pela Lei n. 13.146/15).
Por certo que os leitores deste texto hão de se perguntar por que estas análises são importantes para o exame dos novos requisitos trazidos pela Emenda em comento? A resposta é bastante simples: os direitos sociais, especialmente em se tratando dos assistenciais, não podem jamais retroceder. Não é admissível retrocesso social em qualquer hipótese, a não ser na de uma falência e insolvência total do Estado que necessitaria um novo pacto e rearranjo organizacional. Este não é o nosso caso. Longe disso.
Vejamos, tendo como suporte este horizonte trazido pela tradição constitucional, as alterações propostas pela nova PEC.
A PEC 06/2019 altera a redação do inciso V e insere o inciso VI e os §§ 1º e 2º no bojo do artigo 203. Ademais, também cria regras de transição específicas para o BPC.
Em síntese, cinde o tratamento jurídico dado ao BPC, separando nos incisos V e VI, respectivamente, os requisitos necessários para sua obtenção no caso de PcD ou pessoas idosas. Ademais, altera sua natureza jurídica, que deixa de ser um benefício a cargo da Seguridade Social, passando a ser apenas uma garantia de transferência de renda – o que compreendemos pode empobrecer seu vigor normativo e sua efetividade. Como vimos, quebra a concepção de seguridade social trazida pela CF88.
A idade para a concessão do BPC assistencial retorna aos 70 anos, em notório retrocesso, como vimos. Como paliativo, restou assegurada aos sessenta anos uma renda de R$ 400,00 até que seja editada a nova lei.
A Reforma Previdenciária também busca substituir o atual conceito de hipossuficiência, pelo de miserabilidade, que é mais restritivo e, cremos, também pejorativo, pois traz a ideia de “pessoas miseráveis”. Hipossuficiência é um conceito normativo mais adequado aos objetivos constitucionais de proteção da dignidade da pessoa humana, pois simplesmente se refere à incapacidade econômica de prover o próprio sustento ou vê-lo provido pela família.
Por outro lado, a idade dos 70 anos pode ainda ser maior. Isso porque a PEC 06/2019 propõe um gatilho automático de idade: sempre que houver aumento da expectativa de sobrevida dos brasileiros, o que é constatado pelo IBGE, haverá um ajuste das idades previstas no art. 203, ou seja, poderá ser exigido mais do que 70 anos para a concessão do BPC.
Todavia, é no critério nefasto da renda econômica dos pretendentes ao BPC assistencial que encontramos o maior empecilho, restringindo deverás estes direito fundamental social.
A PEC 06/2019 exige “renda mensal integral per capita familiar interior a um quarto do salário mínimo”. Porém, a regra é mais restritiva que a atual, pois se estabelece que “o valor da renda mensal recebida a qualquer título por membro da família do requerente integrará a renda mensal integral per capita familiar”.
É necessário que se reafirme que o critério para elegibilidade à Assistência Social, constante na CF/88, é o da necessidade. Nunca foi o da miserabilidade. Conferir, neste sentido, os estudos constantes na obra “Benefício Assistencial: a luta pela Assistência Social no Brasil”, São Paulo : LTr., 2018.
Finalmente, as regras de transição para o BPC ainda promovem ampliação do que se considera núcleo familiar para fins de cálculo da renda mensal per capita em relação ao rol hoje previsto no art. 16 da Lei 8.213/91. Com efeito, passa a exigir que a renda mensal obtida por madrastas e padrastos, ignorando-se outras possibilidades de constituição familiar e “força-se” aí uma figura de família recomposta. Estas concepções, portanto, desconhecem os arranjos sociais mais diversos que, especialmente os mais pobres, utilizam como forma de sobrevivência. Estigmatizá-los e marginalizá-los, ao invés de os aceitar para incluí-los, parece um erro primário de qualquer política pública.
As alterações que se pretende efetuar no art. 203 da Constituição Federal fazem parte de um panorama mais amplo da proposta de Reforma Previdenciária, que promove uma constitucionalização de diversos temas previdenciários e assistenciais até hoje objeto de legislação ordinária. Aqui, se busca constitucionalizar os requisitos etários e critérios de hipossuficiência econômica; a definição do núcleo familiar e os valores dos benefícios que serão creditados aos beneficiários; as impossibilidades de cumulação de benefício e descabimento do abono anual. Por certo que, em vingando estas novas concepções de assistência e, em particular, restringindo ainda mais os critérios de acesso ao BPC assistencial, cindimos com os objetivos e princípios constitucionais de combate à pobreza e às desigualdades sociais e regionais consagrados na Carta Cidadão de 1988.
*Marco Aurélio Serau Junior é Doutor em Direito pela USP e Professor Adjunto da Universidade Federal do Paraná (UFPr)
** José Ricardo Caetano Costa é Doutor em Serviço Social pela PUCRS e Professor Adjunto da Universidade Federal de Rio Grande. Advogado Previdenciarista.