Revisão da Vida Toda: a narrativa do INSS versus o direito do aposentado
João Badari*
Desenvolver uma tese sobre qualquer tema é um exercício de pesquisa, conhecimento e discernimento, que em muitos casos só se consegue depois de anos de estudo. E quando o assunto é o futuro de milhares de aposentados brasileiros, a tese deve ser o mais responsável possível. Infelizmente, me deparei com o artigo “Distorções no avesso da Reforma”, da jornalista Miriam Leitão, escrito para o jornal O Globo, onde ela expõe seu profundo desconhecimento sobre a “Revisão da Vida Toda”. Tema que está sendo julgado e pode ser definido pelo Supremo Tribunal Federal nos próximos dias. O voto desempate será do ministro Alexandre de Moraes. O placar atual está empatado em cinco votos.
Aprendi com meus pais uma frase que sempre me acompanha: “filho, você não deve opinar sobre tudo”, ainda mais quando desconheço o assunto. Uma simples leitura da Nota Técnica 4921, de 2020, apresentada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) sobre o tema, já faria a jornalista repensar sobre a publicação.
Cita a jornalista que “advogados desenvolveram uma tese – já há a oferta desse serviço em anúncios – que sustenta que o segurado tem direito de reclamar a revisão da sua aposentadoria com base nos valores recolhidos antes de 1994, mas apenas se for para elevar o valor do benefício.” Aqui cabe destacar que a jornalista está equivocada, pois a tese não é defendida apenas por advogados, ela já foi votada, defendida e aprovada por Ministros do Superior Tribunal de Justiça (de forma unânime), pela Defensoria Pública da União, pelo Procurador-Geral da República e até mesmo por 5 ministros do Supremo Tribunal Federal (incluindo o relator). Não se trata de um produto criado em escritório e sim da defesa de um erro que pode modificar a vida de milhares de pessoas pelo país. Trata-se de um direito e não de uma ideia.
Além disso, cabe esclarecer que os dados econômicos trazidos pelo INSS em sua Nota Técnica não refletem a realidade, pois desconsideraram pontos relevantes, que diminuem drasticamente os números com relação a processos já ajuizados e futuras demandas.
Primeiro: é uma ação de exceção, onde será vantajosa apenas e tão somente para o segurado que ganhava mais no início do seu período contributivo e ao longo da vida seu salário de contribuição foi diminuindo.
O voto divergente, do Exmo. Min. Kassio Nunes Marques, foi de acordo com tal afirmativa: “Excepcionalmente, aqui e ali, haverá um trabalhador que teve altos salários e depois caiu no fim da carreira. Mas isso é raro. O normal é que esse trabalhador tenha maiores remunerações quando está mais velho e com mais tempo de serviço”
A nota do INSS estima que 19,32%, ou seja, menos que 1 em cada 5 aposentados poderá se beneficiar da decisão (item 5 da NT 4921/2020). Em nosso estudo, com casos reais, este valor caiu para 12,53%, onde consideramos 2.138 aposentados, e a ação foi vantajosa apenas para 268 destes.
Outro erro, que pode ser de digitação, mas acredito ser de informação, é que a jornalista cita que os servidores vão ter que digitalizar documentos anteriores a 1991. Vale esclarecer que o ano é 1994, e já contam o CNIS- Cadastro Nacional de Informações Sociais, que já estão digitalizados. Além disso, nesse caso a prova cabe ao segurado e não ao servidor público ter que, manualmente, pesquisar e digitalizar qualquer dado.
Para o cálculo da revisão será necessário também utilizar os salários de contribuição anteriores ao ano de 1982, e eles não fazem parte do CNIS. Na Nota Técnica é expresso que a obtenção de salários anteriores a 1994 foi muito difícil, isso se torna ainda mais para períodos anteriores ao ano de 1982. De 175.540 registros, 67.144 não foram encontrados documentos anteriores ao ano de 1994. (itens 3 e 5 da NT 4921/2020).
Como a prova cabe ao segurado, são documentos com cerca de 4 décadas, onde os aposentados não vão ter como comprovar tais salários, pois não possuem mais holerites e guias de recolhimento. Estes anos não serão passíveis de comprovação e os salários de contribuição serão computados como salários mínimos, caindo ainda mais o número de aposentados que realmente terão cálculo favorável.
Estimando que destes 268 aposentados, metade deles possuem guardados os documentos anteriores ao ano de 1982, teremos 134 aposentados aptos a buscarem a revisão da vida toda. O número cairia para 6,26%.
O correto seria um cálculo utilizando o percentual de aposentados que realmente pleiteiam seu direito, tirando a média de outras revisões (como exemplo, a do “Melhor Benefício” julgada em 2013). A suposição levantada, em que metade irá ingressar com o pedido, gerou imprecisão nos valores.
Vivemos em um país onde a maioria dos aposentados não possuem informações dos seus direitos, possuem dificuldade de acesso ao poder judiciário e grande parte opta por não judicializar, por receio de diminuição na renda ou pagamento de custas.
E mais uma questão deve ser colocada: aposentados que terão o direito de reajuste de R$ 5,00, R$ 20,00 ou R$ 50,00 em seus benefícios, em grande sua maioria, não vão ajuizar um pedido para revisão de valores. Porém, são valores que se encontram na Nota Técnica, inflando os números.
Vale destacar também que os anos em que os benefícios terão maior reajuste já decaíram (2009, 2010 e metade de 2011), e nos outros anos a média de reajuste é muito baixa, variando de 4,9% a 2%. A Portaria SEPRT nº 18770 de 2020 estabelece que, para o mês de julho de 2020, o valor médio da renda mensal do total de benefícios pagos pelo INSS foi de R$ 1.349,69, onde quase 65% dos aposentados recebem 1 salário mínimo no RGPS. Portanto a média de reajuste será de R$ 66,13 a R$ 26,99 ao mês.
A revisão possui a decadência decenal, ou seja, se o primeiro recebimento de benefício já possui 10 anos o aposentado não poderá mais ajuizar a ação.
A Nota Técnica estima o valor de R$ 46 bilhões para o ano de 2009 até 2020, porém desconsidera a decadência para os benefícios de 2009, 2010 e até a presente data, junho de 2011, pois eles todos já decaíram. E estes são os maiores valores de correção.
A Nota Técnica é clara quanto ao fato de que as maiores correções ocorreram nos anos mais remotos, e são justamente eles que já decaíram, não cabendo mais a estes aposentados buscarem seus direitos. Isso diminui sensivelmente o custo aos cofres do INSS. (item 6 da NT 4921/2020).
A cada ano que passa mais pessoas terão seus direitos fulminados pela decadência, o que torna ainda menor o impacto aos cofres.
E ao contrário do que a jornalista defende, a Reforma da Previdência encerrou a possibilidade de revisão para quem se aposentou com as novas regras, pós 13 de novembro de 2019. Não existe a possibilidade de beneficiar quem se aposentou com as novas regras. Ela possui um prazo exíguo para findar-se, não se renovando com novos ciclos de aposentados. Seu fato gerador já está pré-constituído e não mais será renovado.
Portanto, o INSS, em sua Nota Técnica, traz valores prontos, sem o estudo financeiro em si. Apenas supostos resultados, o que impede uma avaliação correta de qualquer impacto. A questão de ordem levantada requer que a mesma seja dada com transparência, publicidade e motivação dos atos administrativos que fizeram chegar aos números apresentados.
O estudo aponta gastos para a realização de cálculos e estruturação para os pedidos de revisão na ordem de R$ 1,6 bilhão, supondo que metade dos beneficiários de aposentadoria por tempo de contribuição possuam toda a documentação necessária, o cálculo lhe seja favorável e tenham êxito na revisão. (item 16 da NT 4921/2020)
A nota expõe claramente que são suposições. Não podemos sobrepor cláusulas pétreas, garantias fundamentas que são o pilar do Estado Democrático de Direito, por suposições trazidas pela ré. (item 16 da NT 4921/2020)
Nos dias atuais nenhum cálculo é feito de forma manual, sendo desarrazoado o custo de 1,016 SM por análise. Hoje o segurado por meio do seu smartphone e aplicativo “Meu INSS” e ao clicar em “calcular aposentadoria” terá em segundos um planejamento previdenciário lhe mostrando sua melhor aposentadoria.
A utilização deste último argumento se mostra desarrazoada da realidade, mas vamos além. Na última semana o INSS levou para a mídia que uma decisão positiva no presente processo elevará o número de filas nas agências. Um detalhe: não existe mais pedido de benefício na agência do INSS, eles são todos remotos, e uma simples revisão como essa, poderia ser calculada em segundos pelo segurado do seu próprio smartphone.
No mais, mesmo que houvesse dificuldade operacional (que obviamente não há), este não pode ser um argumento considerado válido para a desproteção do direito fundamental à Previdência Social, o que engloba, inclusive, o correto valor do benefício.
Por estes argumentos práticos se mostram claros que os números não correspondem com a realidade. E o aposentado tem direito, sim, de buscar seus direitos e de uma aposentadoria justa e de melhor valor, seguindo todas as regras constitucionais e que já são reconhecidas pelo STJ, Defensoria Pública, Tribunais Regionais Federal, pela Procuradoria-Geral da República e por cinco ministro da Corte Superior. A maquiagem de números pode valer vidas, outra lição que a jornalista deveria saber de cor.
*João Badari é advogado especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados