O Estado malfeitor mostra suas garras: o surreal caso das perícias pagas

 
Ricardo Costa*
 
No ano de 2020 organizamos uma obra coletiva denominada “O Estado de Mal-Estar Social brasileiro” (COSTA; SERAU Jr.; SOARES, Editora IEPREV), de acesso gratuito em http://repositorio.furg.br/handle/1/8604. Nesta obra, em que renomados autores refletem os diversos campos das políticas públicas, damos uma atenção especial à desconstituição dos direitos sociais a partir do projeto neoliberal ainda em curso. 
 
De minha parte, não imaginava que o Badfare-State ou Estado Malfeitor, como denominamos, fosse tão longe. Quando o Estado brasileiro deixa de cumprir com sua primordial função de permitir o acesso à justiça aos jurisdicionados, no caso do pagamento de única perícia quando das avaliações por deficiência ou incapacidade laboral (PL n. 3914/2020), ou quando obstaculiza o acesso ao judiciário diante da exigência de requisitos impossíveis de serem cumpridos (caso da PL n. 491/2021. 
 
Antes disso, o Estado de Mal-Estar Social brasileiro vem negligenciando uma política pública que atenda minimamente ao dever de avaliação pericial. Prova disso são o sobrestamento dos um milhão e meio de pedidos de benefícios por incapacidade, esperando perícia no INSS.  
 
Há de se frisar que essa incompetência gerencial e omissão intencional do Estado brasileiro, nesta configuração neoliberal vigente, termina por sobrecarregar o sistema judiciário com um volume assustar de processos envolvendo benefícios por incapacidade e os BPCs da LOAS.
 
Como todo Estado Malfeitor, a saída para a resolução dos problemas deixa de recair sobre si, passando para a conta dos segurados/contribuintes. 
 
Neste sentido é que tramitam no Congresso dois Projetos de Lei de pura maldade e perversidade: o PL n. 3914/2020, que prevê verba para pagamento de uma perícia apenas, bem como o PL n. 4491/2021, aprovado dia 15/03 do corrente ano na Câmara dos Deputados, que impõe vários requisitos para o acesso ao Judiciário.
 
Em ambos os projetos encontramos uma afronta direto ao princípio constitucional do acesso à justiça (leia-se, antes, acesso ao Judiciário), bem como a diversos pactos internacionais firmados pelo Brasil, à exemplo do Pacto de São Jose da Costa Rica.
 
Mais que isso, a limitação de uma perícia apenas, afronta diretamente a pericia biopsicossocial constante no art. 2º do Estatuto do Deficiente (Lei n. 13.146/2015). 
 
No que ao PL n. 4491/2021, aprovado recentemente na Câmara dos Deputados, alterando significativamente o texto original que veio do Senado Federal, as exigências para ingresso de uma ação judicial são, inexoravelmente, impossíveis de serem cumpridas: a) descrição clara da doença e das limitações que ela impõe; b) indicação da atividade para a qual o autor alega estar incapacitado; c) possíveis inconsistências da avaliação médico-pericial discutida; d) comprovante de indeferimento do benefício ou de sua não prorrogação; e) comprovante da ocorrência do acidente e, f) documentação médica relativa à doença causadora da incapacidade.
 
Com exceção do documento constante na letra “d” retro, todas as demais dependem de um bom atestado ou laudo médico para que possam ser atendidas. Ocorre que os jurisdicionados não possuem meios de conseguir estes documentos pelo S.U.S, pelo menos em tempo hábil para ingressar com seus pedidos, bem como, por outro lado, não possuem condições econômicas de arcarem com consultas e exames particulares. 
 
Esse cenário, se ambos os projetos se transformarem em lei, confluirá em um cerceamento do acesso ao Judiciário e à justiça. Acesso ao Judiciário porque, à mingua de documentos, não poderão sequer interpor as ações judiciais; acesso à justiça porque, se vingar apenas uma perícia médica, restara prejudicado a prova da incapacidade duradoura ou a deficiência, vez que frustrada a perícia biopsicossocial.
 
*Ricardo Costa é Professor de Direito da FADIR/FURG. Doutor em Serviço Social pela PUC/RS. Advogado previdenciarista.
 


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