A legitimidade da Revisão da Vida Toda e a perigosa sombra da insegurança jurídica
Murilo Gurjão Silveira Aith*
O Supremo Tribuna Federal deverá retomar nas próximas horas o julgamento, em sessão presencial, dos Embargos de Declaração opostos pelo INSS no Tema de nº 1.102/STF (Revisão da Vida Toda), em que os aposentados anseiam por um desfecho definitivo pelo Judiciário há, infelizmente, aproximadamente uma década. Por tal razão, é desarrazoado crer que a Suprema Corte admitirá engendradas para protelar o desfecho do tema, na medida em que os aposentados estão sendo sorrateiramente prejudicados pelo INSS por muitos anos.
Não é demais rememorar que, durante a tramitação do Tema, inúmeros idosos que faziam jus ao direito já faleceram, enquanto os remanescentes vivem suas vidas sem perceber mensalmente o valor justo e digno da sua aposentadoria.
Impende asseverar, na oportunidade, que não estamos tratando de benefícios de natureza assistencial, mas sim de contribuintes (os segurados efetuaram os recolhimentos para, ao final, receber o que lhe é devido por lei). Como se vê, a Revisão da Vida Toda não é uma “caridade”, é um direito legítimo cuja finalidade é, na medida do possível, reparar parcialmente um teratológico erro cometido pelo Estado perante os cidadãos.
Pois bem, a tese revisional versa, em síntese, sobre a aplicação da regra permanente do art. 29, I, da Lei nº 8.213/91 – que leva em consideração todo o período contributivo do segurado no momento da confecção dos cálculos do salário-de-benefício e da RMI do benefício previdenciário – em vez da regra de transição do art. 3º da Lei nº 9.876/99 (a qual limitava o PBC à 07/1994).
Em virtude das reformas econômicas implementadas para combater a hiperinflação, o Poder Legislativo, no exercício de seu poder-dever, observou a necessidade de proteger os segurados já filiados à previdência. Visando afastar o PBC (período básico de cálculo) anterior à 1994 – em que as contribuições sofriam aplicações de diversos índices/indexadores –, o legislador introduziu uma regra transitória para os trabalhadores que já estavam próximos da aposentadoria e poderiam ter seu benefício reduzido drasticamente por conta de um período econômico turbulento. Daí a existência do art. 3º, da Lei nº 9.876/99.
Conforme redundantemente asseverado, tal norma possui caráter transitório, cuja finalidade é meramente resguardar o direito dos segurados filiados até 29/11/1999. Ainda em virtude da natureza transitória, não poderia o art. 3º da Lei nº 9.876/1999 ser interpretado de modo a prejudicar segurados que já possuíam duradoura e regular trajetória contributiva antes de sua edição, facultando-se ao segurado a escolha pela aplicação da norma que lhe é mais vantajosa (no caso, a regra permanente), consoante já definido no Tema de nº 334/STF (trata-se daquilo que as melhores doutrinas denominam de “direito ao melhor benefício”, assegurado pelo STF no ano de 2013 pelo crivo dos repetitivos).
Em perfunctória análise, percebe-se que a Revisão da Vida Toda, nada mais é do que a mera reafirmação do direito ao melhor benefício, porquanto, em sua essência, a tese representa um resgate da equidade e da justiça para com aqueles que dedicaram toda uma vida de trabalho e contribuição. Rejeitá-la, significaria desconsiderar o esforço contributivo de milhares de trabalhadores, além de contrariar inúmeros princípios que compõem as estruturas do ordenamento.
Nessa toada, reafirmando os precedentes do próprio STF, o STJ reconheceu a possibilidade do segurado que tenha ingressado no RGPS em momento anterior à edição da Lei nº 9.876/99 optar pela aplicação da regra permanente do art. 29, inciso I, da Lei nº 8.213/99, firmando sua tese, também sob o manto dos repetitivos, por ocasião do deslinde do Tema nº 999.
Naturalmente, o STF, ao julgar o mérito – diga-se de passagem, por duas vezes, em Plenário Virtual e Físico, em seis votos a cinco – entendeu pela legitimidade da tese revisional.
A clareza do mérito na Revisão da Vida Toda (rememoramos: favorável aos aposentados) fulmina integralmente qualquer controvérsia, já que optar pela regra definitiva, se mais benéfica, é um direito do segurado, não podendo, sem justo motivo, a parte mais vulnerável e hipossuficiente da relação jurídica ser, de qualquer modo, prejudicada.
Percebe-se, contudo, uma tendência prejudicial aos aposentados em alguns posicionamentos adotados por uma minoria dos Ministros que, intencionalmente ou não, desestabilizam o mérito já apreciado e, consequentemente, a segurança jurídica.
Caçar vícios formais inexistentes com o exclusivo intuito de prejudicar um direito legítimo e justo dos aposentados abalaria todos os pilares do ordenamento jurídico, gerando um ambiente de desconfiança e instabilidade, pois criaria falta de previsibilidade/consistência nas decisões/precedentes judiciais.
Tentar anular todo o julgamento de mérito com base em uma omissão imaginária do Ministro aposentado Ricardo Lewandowski afetaria negativamente a reputação do Judiciário, provocando consequências econômicas adversas que vão muito além dos interesses individuais dos aposentados, dada a criação de um ambiente incerto que desencoraja investimentos e planejamentos a longo prazo – sem mencionar na desconfiança da instituição que deveria amparar o aposentado.
O voto de Zanin no ambiente virtual certamente promove um sentimento de desamparo e total descrença no sistema que, por sua vez, afeta a percepção pública da Justiça em todas as matérias.
Permitir, em silêncio, a criação e consolidação de um precedente com potencial perverso aos hipossuficientes, seria carimbá-lo de forma omissiva. Não à toa, até o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou no Tema, rogando pela não violação de um direito cabalmente tutelado.
Indo além, como ramo vocacionado à tutela dos aposentados (majoritariamente, grupo composto por pessoas idosas e debilitadas), um dos principais pilares do Direito Previdenciário é o princípio protetivo. Em suas formas, sua função é solucionar conflitos normativos e dúvidas hermenêuticas em favor do segurado (o hipossuficiente).
De nada adianta o legislador cumprir o seu dever e amparar o segurado ao lhe oferecer o direito de preferência acerca de regras definitivas/transitórias, se o próprio órgão responsável pela concessão, manutenção e fiscalização dos benefícios previdenciários opta por prejudicá-lo.
Estamos tratando de regras que passaram pelo legislativo, pela Suprema Corte e, novamente, o caso retorna ao Plenário apenas para “reafirmar” o direito. Por tal razão, não se deve, agora, anular todo o trabalho despendido, afinal, estamos diante de mera reafirmação do direito ao melhor benefício.
O que, de fato, está em voga, não é mais o reconhecimento de um direito (o direito já foi reconhecido em inúmeros momentos, tanto pelo Legislativo, quanto pelo Judiciário), mas sim a integridade e a decência do Judiciário na salvaguarda dos direitos sociais.
Trata-se de verdadeira oportunidade ao Judiciário de reafirmar o seu compromisso com a Justiça e com a proteção dos direitos dos cidadãos, em especial, aos vulneráveis e aos hipossuficientes.
Decerto, haverá uma reflexão ponderada e sensível de todos os Ministros nesse desfecho, visto que o Tema é, em verdade, um genuíno instrumento de fortalecimento da justiça social, da estabilidade jurídica e do respeito à cidadania.
À vista do exposto, conclui-se que é constitucionalmente inadmissível nova postergação do resultado definitivo, afinal, os aposentados não podem mais esperar, adiar o julgamento por quaisquer motivos provocaria mais prejuízos à classe que, a rigor – pelo entendimento das melhores doutrinas –, se enquadra como vulnerável e hipossuficiente. Confiamos que a Suprema Corte trará um alívio categórico aos idosos, pacificando o Tema, porquanto muitos não suportariam mais alguns anos de angústias na etapa final de suas vidas.
*Murilo Gurjão Silveira Aith é advogado e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados